O rock eleva-se da campa pela enésima vez

Nos balanços de final do ano muito se falou do rock honesto, conciso e furioso, em tempos de incerteza, de bandas como os IDLES e Shame, fazendo com que existam cada vez mais vozes a proclamar, pela enésima vez, que o rock está a recuperar a relevância cultural que parecia esbatida.

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Olhando para os balanços de 2018, constata-se que existe um retorno às formações rock e que há uma banda que sintetiza esse movimento de forma mais convincente do que as outras: os ingleses IDLES JOY MAIN ASSETT

Há mais de uma década, em 2006, o designer de moda, artista e criador de imagens Hedi Slimane concebeu uma exposição em Paris a que deu o nome de As Tears Go By. A mostra jogava ironicamente com a ideia de morte do rock através de uma instalação que representava uma espécie de santuário. A ironia advinha daquele ser um templo bem vivo. Em vez de falecimento, o que se celebrava ali era o enésimo renascimento do rock.

Através de objectos e imagens era-nos dado a ver e a sentir essa ausência de distância entre palco e plateia onde músicos e público participam no mesmo ritual abstracto que perpetua a energia primordial do rock. Fazia sentido. Na alvorada dos anos 2000 o impacto obtido pelos americanos The Strokes, Interpol ou White Stripes ou pelos britânicos Libertines, convenceu muitos adolescentes de todo o mundo que ter uma banda rock valia outra vez a pena. Nos anos que se seguiram muitos nomes com menos visibilidade foram-se impondo e o público voltou a entusiasmar-se.

A exposição celebrava isso, ao mesmo tempo que escarnecia das mortes decretadas do rock. Um parecer que é ciclicamente recalcado, apesar de as narrativas que o sustentam se transformarem. Umas vezes fala-se de falta de criatividade. Outras de diluição do espírito de transgressão. E outras da ausência de sentimento de pertença ou do limitado impacto comercial a favor de outras tipologias. E às vezes de tudo isto misturado.

Hedi Slimane sabia o que pretendia comunicar. Havia crescido para a música nos anos 1980, entusiasmando-se com as movimentações do pós-punk e depois com os Sonic Youth ou Husker Dü. Nos anos 1990, apesar de reconhecer alguma valia aos Nirvana, o seu entusiasmo virou-se para a música de dança. Foi aí que percebeu uma relação com a realidade envolvente que o rock já havia esquecido, perdendo-se no culto de personalidade (Oasis), na megalomania pós-grunge (Smashing Pumpkins) ou em tendências derivativas como o nu-metal dos Limp Bizkit aos Slipknot. Opulento, barroco, a crescer para os lados, o género parecia imerso na sua própria noção de espectáculo, não criando vínculos.

Naquela exposição, Hedi Slimane expunha o sentido comunitário que toda essa nova geração dos anos 2000 representava, captando situações cénicas que espelhavam desejo de comunhão – corpos que se ofereciam a outros corpos, misto de suor, esgares, cumplicidades e expressões de abandono. Olhava-se para aquelas imagens e nelas, músicos e público, confundiam-se.

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A secção rítmica dos IDLES é o veículo sonoro preferencial das canções, enquanto as guitarras são ruidosas sem nunca serem exibicionistas Paulo Pimenta

A liturgia dos ícones e das celebridades rock, que havia dominado outros períodos da história, não era para ali chamada. Não se endeusava ninguém. Ali quem estava em palco podia estar no público e vice-versa. Havia até aspiração de anonimato. Celebrava-se o espírito do rock, o regresso das canções curtas e incisivas, das invasões de palco, dos concertos em caves, o nervo, a pele, a emoção, o gesto, a performance, o estar em colectivo. Sentir que não se está isolado naquelas sensações.

Ciclicamente isso sucede. Claro que o rock nunca desapareceu. Nos últimos anos a actividade das Savages ou dos Iceage provam-no. Mas a sua pujança sociocultural, enquanto ideia colectiva, é posta em causa em certas alturas. Existem períodos em que parece fazer mais sentido do que noutras, nomeadamente quando consegue captar algo ainda em bruto, sem forma, difícil de nomear, mas que se intui que está lá pela energia comum que se partilha. No caso do panorama actual, e olhando para os recentes balanços de 2018, constata-se que não só existe um retorno às formações rock, como há uma banda que parece sintetizar e produzir esse efeito de forma mais convincente do que as outras: os ingleses IDLES.

Não é evidentemente só a música. É até muito discutível se o álbum Joy as an Act of Resistance (2018), que acabou por aparecer na generalidade das listas de melhores do ano, é melhor que a estreia com Brutalism (2017), mas isso pouco importa porque este é um acontecimento para se perceber ao vivo, em concerto.

Dissecado com distância, e até algum cinismo, em casa, analisando influências e ascendências, nunca se chegará lá. É preciso estar lá, com disponibilidade, no meio do caos, sem receio de não se perceber tudo o que se vive. Foi isso que sentiu, por exemplo, no espaço do armazém Lisboa ao Vivo (tocaram também no Hard-Club do Porto), no final de Novembro. Antes já cá tinham estado, no Primavera Sound do Porto, e irão estar também no Nos Alive de Julho deste ano em Lisboa. Mas neste caso é mesmo verdade que numa pequena sala a diferença é enorme. A proximidade, a partilha, faz parte integrante do protocolo.

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A música, dos Shame tem o lado primitivo e selvagem do punk, mas é povoada também por doses de melodia. E depois há este vocalista, Charlie Steen Paulo Pimenta

E foi isso que se sentiu ali. A secção rítmica é certeira e rápida, tornando-se no veículo sonoro preferencial das canções, enquanto as guitarras são ruidosas sem nunca serem exibicionistas. A voz e presença de Joe Talbot, 33 anos, são tão magnetizantes quanto cortantes, enfatizando a realidade sociopolítica actual, gritando palavras por uma realidade mais igualitária e inclusiva, onde a vulnerabilidade deve ser partilhada e não julgada, contra a precariedade, as desigualdades sociais ou os vícios sistémicos.

Enquanto programa de reflexão e resistência, fazem lembrar os Sleaford Mods, e tal como aqueles, mas de forma diferente, acreditam que a comunicação é mais viável quando existe exposição sem simulacros. Existe neles um apaixonante optimismo em vez de niilismo. Não têm propriamente ideias salvíficas sobre o mundo conturbado de hoje, mas fazem sentir a quem os experiencia que, em colectivo, é sempre mais reconfortante e alegre traçar caminhos possíveis. Não se assumem como banda política. Preferem dizer que a política faz parte da vida de todos os dias. Não empunham bandeiras e muito menos a do rock, mas a verdade é que, mesmo que involuntariamente, são cada vez mais tomados como modelo.

E não estão sós. Parquet Courts, Goat Girl, Courtney Barnett, Snail Mail, Bodega, Rolling Blackouts Coastal Fever ou Shame lançaram também discos rock em 2018 que valem a pena. O que é curioso é que isto acontece quando a cultura rock, em termos de presença comercial, foi superada na última década e meia pelos universos do R&B e do hip-hop. Hoje a hegemonia, em termos de centro do mercado, já não lhe pertence. De alguma forma é como se o rock habitasse hoje nas margens, o que parece estar a produzir bons sinais. Enquanto o hip-hop (felizmente, com muitas excepções, como é evidente) revela sintomas que já foram os do rock em décadas passadas – aburguesamento, autocentramento, deslumbramento, ego-mania, afastamento da realidade, prevalência do discurso materialista sobre o artístico – existe uma nova fornada que tenta dar uma sapatada na letargia reinante.

Fazem-no, é certo, de forma algo anacrónica, mas ao mesmo tempo com sentido da realidade e entusiasmo. Para além dos IDLES, são os ingleses Shame que mais têm dado nas vistas. E mais uma vez é em palco que são absolutamente convincentes, apesar do álbum de estreia, Songs Of Praise, também ter sido vitoriado neste final de ano. Vimo-los pela primeira vez numa pequena sala, em Janeiro de 2017, no festival Eurosonic de Gronigen, e ficámos tão rendidos que regressámos a eles na noite seguinte. A sua música, tal como a dos IDLES, possui o lado primitivo e selvagem do punk, mas no seu caso é povoada também por doses de melodia e crescendos de intensidade. E depois têm um vocalista, Charlie Steen, que é uma espécie de Mark E. Smith (The Fall), mas apenas com vinte anos, tão provocador e agitador, quanto generoso, na sua prestação, como deve ter constatado quem os viu no Milhões de Festa ou em Coura, embora, a sua proposta faça sentido num espaço de clube.

Tal como aconteceu em 2001 com os álbuns de estreia dos Strokes e dos White Stripes – e salvaguardas as distâncias porque hoje a realidade musical é muito mais fragmentada e estilhaçada – também os registos dos IDLES e dos Shame propõem ideias simples, mas que até parecem inovadoras, de tal forma têm atrás de si uma conjuntura inerte. O seu propósito é devolver-nos temas imediatos e descarnados, sem adornos, apenas preocupados com o centro nervoso das canções.

O sucesso das estreias dos Strokes e White Stripes permitiu que a indústria, e uma avalanche de seguidores, voltassem a acreditar na força redentora do rock nos anos 2000. A conjuntura agora é outra, mas os sintomas de 2018 apontam para um renovado interesse em volta do género enquanto força sociocultural, em particular na Grã-Bretanha.

Os IDLES são de Bristol. E os Shame do sul de Londres. De Dublin são as Vulpynes ou os Fontaines D.C., cruzando com vigor influências do pós-punk (das Slints aos P.I.L.), à imagem dos estimulantes Black Midi. Liderados por raparigas há os Goat Girl ou os Sorry, mas também as nova-iorquinas Bodega, todos eles denotando essa renovada vitalidade do rock, não apenas como prática musical, mas como acontecimento social, algo que nos faz participar nas dinâmicas do presente, fazendo com que a nossa experiência individual seja reflectida na relação com a comunidade.

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