“Interesse público” dita despedimento de médico. Falta provar impacto das suas acções nos doentes

Testemunhos contraditórios e falta de relatórios de peritos ditaram arquivamento do processo. INEM não conseguiu aferir se decisões do médico comprometeram estado das vítimas.

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A frase é lapidar: “O INEM deve avaliar a pertinência da continuidade desta prestação de serviços médicos, tendo em vista o interesse público e a garantia da eficácia das missões de emergência médica.” A sugestão de afastamento, com argumentos graves de que estaria em causa o interesse público, é feita pelo inquérito interno do instituto a António Peças, cirurgião em Évora e médico do helicóptero de emergência médica da mesma cidade, acusado de recusar transportar três doentes depois de indicação do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU). O caso seguiu para a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) e também para o Ministério Público.

No inquérito interno do INEM, consultado pelo PÚBLICO, os instrutores têm denúncias sobre três casos: o primeiro, na noite de 13 de Abril de 2017, em que Peças colocou entraves ao transporte de Faro para Lisboa de uma mulher de 37 anos com um dissecção da aorta, que viria a falecer sem ser transportada. Demorou uma hora a arrancar no helicóptero. O segundo caso aconteceu na madrugada de 16 de Maio do mesmo ano. Recusou o transporte de um doente de 82 anos com um AVC, de Évora para o Hospital de S. José. E um terceiro, a 29 de Outubro de 2017, em que alegou estar doente com uma gastroenterite, quando estaria de serviço numa tourada. 

As situações, reveladas pelo Observador através de documentos e chamadas telefónicas aos quais o PÚBLICO também teve acesso, chegaram ao conhecimento da direcção do INEM através de uma denúncia anónima, que revelava também que o médico trabalhava em vários sítios ao mesmo tempo, e de duas queixas de uma médica do CODU e de uma médica de Évora. 

Destes três casos, só o da tourada foi investigado pelo instrutor do INEM e foi inconclusivo, porque as testemunhas, incluindo o médico do CODU, avançam com dados contraditórios. Peças estaria na tourada, mas não foi possível ao instrutor provar que estava efectivamente lá no momento em que recebeu um pedido de serviço de helicóptero e alegou estar com uma gastroenterite.

Isto, porque a enfermeira ao serviço do helicóptero disse que esteve sozinha durante a escala, sem presença de qualquer médico na base, mas não deu a certeza do dia; já o técnico de ambulância presente na tourada disse que Peças esteve na praça, mas “não se recorda” de ter sido durante todo o tempo. E o médico regulador do CODU, Francisco Marcão, afirmou que o telefonema feito a Peças não serviu para activar o helicóptero, mas para “trocar opiniões” sobre a forma de transferir o doente. O estado de saúde de Peças, alegou ainda, “não foi fundamento” para decidir pelo transporte por ambulância. Perante este relato, o instrutor apenas conseguiu concluir que Peças esteve na tourada sem autorização, porque só pode sair da base para alimentação e não para outros fins.

Quanto às duas outras situações, o instrutor nada pôde concluir, por ter valências de investigação limitadas a situações processuais. Contudo, as provas recolhidas foram suficientes para propor o fim do contrato com Peças, com efeitos a partir de 1 de Fevereiro, e recomendar o envio do processo para a IGAS e para a Ordem dos Médicos, que estão a investigar.

O inquérito não chega a analisar se houve ou não relação entre as acções de António Peças e o que viria a acontecer aos dois doentes. O instrutor conclui pela necessidade de uma “análise independente” por “médico experiente, com conhecimentos em doentes críticos e helitransporte”, com o objectivo de “avaliar o fundamento técnico para as decisões tomadas [por Peças] de recusar o helitransporte e se as mesmas comprometeram ou não o prognóstico das vítimas”. Esta análise não chegou a ser feita. Não foi possível apurar a razão.

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Os casos

António Peças é conhecido no INEM por ser de trato difícil. Nas gravações de chamadas, a que o PÚBLICO teve acesso, há desabafos de médicos sobre as dificuldades de lidarem com o médico. 

“Eu estou farta de cada saída do ‘heli’ ser um problema. Parece que não querem sair”, diz uma das médicas em conversa com Peças. O médico tinha-se queixado de o serviço de helitransporte parecer “um serviço de entrega ao domicílio” e na resposta à médica diz: “A última vez que me mandaste e que estivemos a conversar, foi para uma doente que estava morta. Estava morta, lembras-te?

A doente a que se referia é a mulher de 37 anos que esteve internada nas urgências do Hospital de Faro durante 48 horas, a quem tinha sido diagnosticado um aneurisma. A doente estava consciente naquela noite, mas em Faro, onde não havia a especialidade médica, temiam um agravamento do seu estado e pretendiam transferi-la para o Hospital de Santa Cruz (Carnaxide), que a aceitava. 

Depois de demorados telefonemas, incluindo um que chega a 18 minutos, o cirurgião aceita o serviço, mas teria de sair de Évora, ir a Faro e fazer o transporte para Lisboa. De acordo com os registos do CODU consultados pelo PÚBLICO, o helicóptero apenas arrancou uma hora depois de ter sido accionado, quando, por norma, pode estar no ar em 15 minutos.

Nos argumentos para resistir a esta missão, Peças questiona a rapidez e diz que o serviço por via terrestre seria mais rápido, o que é contrariado pela médica do CODU que diz que por via terrestre demora no mínimo três horas. “Entre a vida e a morte de uma mulher de 37 anos, eu acho que temos de lhe dar a hipótese”, diz a médica. Peças ainda diz que não discute “a hipótese”, mas aceita contrariado. “Nunca me nego a nada, acho isto uma cagada, mas pronto, tudo bem. (...). Desde o princípio tu não me ouviste dizer que recusava o transporte.

Quando chega a Faro, o estado da doente tinha-se agravado. Peças acredita que a dissecção “estourou” e que a doente não tem “condições mínimas para ser transportada” e, por isso, pede ao CODU que confirme se Santa Cruz ainda a recebe. Quer precaver-se a ele e ao INEM “de qualquer situação menos agradável”, numa espécie de antevisão de problemas futuros.

Este seria o caso recordado por Peças numa conversa com a mesma médica um mês mais tarde, quando se recusou a transportar um homem de 82 anos com um AVC. O doente estava no limite para ser operado e estava indicado na “via verde AVC”, um procedimento que acelera o tratamento destes doentes.

O cirurgião recebe uma chamada de activação do helicóptero e questiona os critérios para decisão de helitransporte, sobretudo porque o doente não está entubado. “O doente está em ventilação espontânea, não é? Qual é a justificação para um helitransporte?”, pergunta. “Por causa da rapidez”, responde a médica. “Se é esse o argumento, digo-lhe já que recuso o transporte.” O argumento é de novo a rapidez. “Se o motivo do transporte é a rapidez com que o doente se põe em Lisboa, não é mais rápido ir de helicóptero do que de ambulância.”

A médica, que mais tarde viria a fazer queixa deste comportamento, responde com um argumento que fica sem resposta: “Se o transporte por terra é mais rápido, há que eliminar o ‘heli’.”

“Denúncias falsas”

O PÚBLICO falou com António Peças na segunda-feira por ter tido conhecimento da sua dispensa enquanto médico do helicóptero do INEM. Na conversa, antes das notícias sobre as acusações que lhe são feitas, o médico disse estar a ser vítima de saneamento. Quando questionado sobre se existiam inquéritos sobre si, respondeu: “Nunca fui acusado de más práticas, de nada. Não houve nenhum inquérito.”

Minutos depois, o INEM respondeu oficialmente ao PÚBLICO com a indicação de que a cessação do contrato se devia a este inquérito. O PÚBLICO confrontou Peças, que disse tratar-se de “denúncias falsas” e que não tinha sido notificado do fim do processo.

Depois destes contactos, e depois de ter acesso a documentação com factos graves que lhe são imputados, o PÚBLICO voltou a entrar em contacto com António Peças, que disse estar a delinear a estratégia com os seus advogados, não prestando mais declarações.

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