Os Sopranos: 20 anos de uma família feita na América

A 10 de Janeiro de 1999, o episódio-piloto da série que ajudou a fundar a era dourada da televisão foi para o ar nos Estados Unidos. Dizer que com Os Sopranos a ficção televisiva mudou para sempre não é exagero.

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A 10 de Janeiro de 1999, a televisão mudou para sempre. Sem exagero. Foi nesse dia que uma estação de cabo chamada HBO, em actividade desde o início dos anos 1970 mas então ainda a dar os primeiros passos no terreno das séries dramáticas, estreou Os Sopranos. Não é que não houvesse televisão de qualidade antes, mas, de repente, abriram-se várias novas possibilidades nesse meio, engendrando uma verdadeira revolução. Nascia uma nova era dourada da televisão, que continua até aos dias de hoje, quase 12 anos após Os Sopranos terem chegado ao fim.

Tudo partiu do olhar de David Chase, o criador da série, sobre a vida de Tony Soprano, pai de dois filhos e patriarca de uma família da máfia de Nova Jérsia que começa a fazer terapia com uma psiquiatra, com os seus medos, os seus sonhos – literalmente –, os seus ataques de pânico e os seus altos e baixos a ganharem forma no ecrã. Interpretado por James Gandolfini, que morreria em 2013, aos 51 anos, não foi o primeiro anti-herói da televisão, mas foi pioneiro de uma época de protagonistas (quase sempre homens) imperfeitos e moralmente complexos em dramas sérios, um paradigma dominante ao longo dos anos que se seguiram.

"Tens um protagonista tão intrigante, tão grande, é meio sexy de certa maneira, que está a matar alguém, mas não ficas chateado com ele. Alguém que sabe como pedir desculpa à mulher e aos filhos. E mostra os seus verdadeiros sentimentos.” É assim que o apelo de Tony é resumido por John Ventimiglia, actor que na série interpretou o papel do chef Artie Bucco, o amigo não-mafioso de Tony. Fala ao telefone com o PÚBLICO um dia antes da reunião do elenco e da equipa da série, que festejarão esta quinta-feira as duas décadas da estreia do episódio-piloto, gravado em 1997. “Tive a sorte de ficar com essa personagem, porque a maioria das minhas cenas era só a dois, não era em grupo. Ele abraçava-me, dava-me um estalo e depois beijava-me, era uma óptima dinâmica”, conta, descrevendo a relação entre Tony e Artie. É que, com o tempo, diz, "cada actor transformou-se naquilo que era como personagem".

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John Ventimiglia foi na série o chef Artie Bucco DR

Uma nova forma

Mal havia televisão assim na altura. Os Sopranos não precisava dos intervalos típicos nem cumpria as obrigações narrativas que tais interrupções pediam nas televisões generalistas, um meio em que Chase, que escreveu para séries como No Fim do Mundo ou The Rockford Files, tinha experiência. "A FOX rejeitou a série. Fomos para a HBO, do cabo, estavam a tentar fazer séries. Tinham aquela da prisão, o Oz, para a qual fiz uma audição. Quase consegui, mas depois deram-me o papel do Artie e tive de escolher. Acho que fiz bem", confessa o actor.

Como antecedentes desta série pioneira, aponta Eu, Cláudio, série da BBC dos anos 1970. “Era uma obra-prima. Não sei se o David Chase concorda, mas sinto que houve alguma inspiração ou influência”, arrisca. A avó do protagonista “até se chamava Livia”, tal como a conturbada mãe de Tony. Ventimiglia sublinha o carácter humano das personagens das duas séries. “Não estávamos em naves espaciais, eram só pessoas a viverem uma vida. Dava para te identificares."

"O equivalente a um Benfica-Sporting"

Na América, o impacto de Os Sopranos foi imediato. Bruno de Almeida, o realizador português e amigo de John Ventimiglia, com quem fez vários filmes, o último dos quais é Cabaret Maxime, morava em Nova Iorque na altura. "Aos domingos, quando aquilo começava, não se via ninguém na rua”, conta: “Era o equivalente a um Benfica-Sporting.” O amigo Ventimiglia não vai tão longe. "Não era tanto não haver ninguém, mas muita gente que teria estado na rua não estava. Faziam-se festas para ver episódios, tinhas de esperar até domingo para saber o que se ia passar." A fama continua até hoje: “Achas que nos últimos dois ou três dias alguém não me parou na rua?”, pergunta.

O realizador português conhecia uma boa parte do elenco desde o início dos anos 1990. "Uns conheci em castings, outros em bares. Frequentavam as mesmas peças de teatro, as mesmas salas de cinema e trabalhavam no meio do cinema independente. "Tudo o que era o trabalho de desenvolvimento de personagens, actores e guiões passou do cinema independente para séries de televisão", reflecte, resumindo um dos legados de Os Sopranos.

Bruno de Almeida tentou, aliás, realizar para a série, por sugestão de Michael Imperioli, outro amigo, que fazia de Christopher Moltisanti. “Acharam que eu era demasiado artista. Essa vida da televisão acabou por ser o que a maior parte da minha geração, da minha idade e do mesmo circuito, fez, eu acabei por não enveredar por aí”, conta, falando também da falta de liberdade que realizadores têm na televisão, um meio dominado pelos argumentistas.

David Chase, que nasceu em 1945 e cresceu em Nova Jérsia, queria trabalhar em cinema. Não gostando necessariamente de televisão, acabou por enveredar por esse caminho e por aproximar os dois meios. Não foi o primeiro, mas com Os Sopranos contribuiu para elevar o trabalho do showrunner, a mente por detrás de uma série, tornando-o um nome importante, conhecido pelo público, e nessa operação fundando uma televisão quase de autor – mesmo que a televisão seja por definição um meio altamente colaborativo e tenha havido mais argumentistas envolvidos.

Bruno de Almeida, que se cruzou com ele em jantares da equipa da série, "à pendura" dos amigos, comenta: "O David Chase não era necessariamente um tipo muito simpático, era um bocado reservado. Ele ganhou um espaço de autor. Só assim se percebe como é que admitiram que uma série com o sucesso que teve Os Sopranos tivesse aquele final, uma cena quase Luís Buñuel..."

John Ventimiglia tem outra opinião. "O David Chase é uma pessoa muito interessante e divertida. Aprecia mesmo este ofício. Sabe tanto e é tão acessível... Às vezes." Elabora: "Quando estás a gerir uma série destas, há tanta responsabilidade, porque o sucesso crítico é tão grande. Ele fez tudo, todas as decisões. Saíamos às vezes, íamos a um bar depois das filmagens, mas na manhã seguinte tinha de fazer cem decisões."

Já Gandolfini é uma história diferente. Ambos se referem a ele como alguém cheio de coração. Bruno de Almeida, que diz que o actor pagava regularmente os tais jantares a toda a gente, conta uma história em que, entre a quarta e quinta temporada, James Gandolfini renegociou com a HBO o seu contrato e o seu salário. Durante o tempo de negociação entre o actor e o canal, a rodagem foi adiada. Para compensar o elenco, Gandolfini terá pago aos actores, do seu bolso, aquilo que teriam recebido caso tivessem trabalhado durante esse tempo. John Ventimiglia não confirma directamente, mas explica: "Ele era o mais justo. Era muito socialista nisso, até certo ponto. Dava muito e não queria que ninguém contasse a ninguém. Era o mais generoso, uma pessoa com um coração enorme."

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James Gandolfini (à esquerda), o patriarca de Os Sopranos DR

Aquele final

Made in America, o 21.º episódio da sexta temporada da série, foi para o ar em Junho de 2007. A última cena da série é ainda hoje amplamente discutida e dissecada. Esta quarta-feira, os críticos de televisão Alan Sepinwall e Matt Zoller Seitz (que a dada altura trabalharam ambos no Newark Star-Ledger, o jornal que Tony Soprano ia buscar à porta de casa no início de vários episódios) publicaram uma discussão no Vulture, o site da New York Magazine, sobre se – e isto poderá ser um spoiler com quase 12 anos – o protagonista morria ou não naquele diner, quando o ecrã ficava preto.

Os dois acabaram de lançar The Sopranos Sessions, um livro comemorativo destas duas décadas. Numa entrevista de Chase publicada no livro, que apresenta a série como tendo "arrasado preconceitos sobre o tipo de histórias que o meio" televisivo "devia contar", o criador refere-se ao final, sem querer, como "aquela cena da morte", para depois se retrair e dizer que estava a falar de uma ideia anterior que foi descartada. Vai ser discutido para sempre. Ainda esta segunda-feira, numa entrevista ao The New York Times, Chase dedicou uma parte da conversa ao final da série (além de ter partilhado que A.J., o filho do Tony, seria hoje amigo de Stephen Miller, conselheiro de Donald Trump).

"As pessoas vinham ter comigo na rua a perguntar o que tinha acontecido. 'O que é que achas que aconteceu, meu? Não tens estado a prestar atenção?'", partilha John Ventimiglia, que tem uma resposta: "Eu não escrevi aquilo. Não podia ser mais simples: as luzes apagaram-se. Faz parte da linguagem", continua, referindo-se à expressão "put your lights out", que significa pôr alguém knockout com um murro. Mesmo assim, admite: "É um bocado a beleza disto. Não podes saber tudo." 

Entretanto, a televisão mudou. Já não se dá, felizmente, só atenção a anti-heróis brancos do sexo masculino e aos seus problemas importantes. Os Sopranos acabaram, mas o seu universo não morreu. David Chase e Lawrence Konner, um argumentista da série, escreveram The Many Saints Of Newark, uma prequela que será realizada por Alan Taylor. O filme passar-se-á nos anos 1970, no auge das tensões entre italo e afro-americanos em Newark, Nova Jérsia, e centrar-se-á em Dickie Moltisanti, o pai de Christopher Moltisanti, protegido de Tony. Tony aparecerá em novo, interpretado por outro actor, bem como outras personagens.

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