Quando o Estado falha e ninguém liga

Não há dinheiro para tudo, mas há prioridades. Enquanto sociedade, estamos a falhar com quem tem diabetes.

A maioria dos que me lêem abusou um pouco dos doces no Natal. Dentro do espírito da época, em 27 de Dezembro, numa página de Facebook chamada “Pérolas da Urgência”, um médico fez uma piada com a diabetes, gozando com quem tem diabetes e aparece com as glicemias descontroladas no hospital. Deviam era ter juízo e comer menos doces.

Vários diabéticos se indignaram. Entre as queixas, havia uma recorrente: a piada apenas se aplicava a diabéticos de tipo 2 e não de tipo 1. Pessoas com diabetes de tipo 1 explicavam que esta diabetes não dependia de hábitos alimentares e que podiam abusar ocasionalmente desde que injectassem a insulina adequada ao que comiam. O que mais me chamou a atenção foi que alguém, para contestar o médico, lhe disse que havia bebés de poucos meses que tinham diabetes de tipo 1 e que tal não era resultado do estilo de vida ou da alimentação. O médico, arrogante, respondeu que isso era impossível e desafiou o seu interlocutor, Pedro Assunção, a publicar um artigo científico sobre o assunto. Rapidamente, mostraram ao médico que estava errado. Por exemplo, uma mulher que contou que o seu filho ficou diabético aos 16 meses. Em vez de corrigir o erro, o médico apagou os comentários.

Eu vivia na mesma ignorância até Junho de 2016, quando a minha filha foi diagnosticada. Aos sete anos, tinha diabetes tipo 1. Percebi que a minha ignorância era geral. Ainda no hospital, apercebi-me de que uma enfermeira estava a dar as doses erradas de insulina na minha filha. E, como o exemplo acima ilustra, a ignorância chega também à classe médica. Ao contrário da diabetes de tipo 2, que é uma epidemia dos tempos modernos, relacionada com o estilo de vida e a alimentação, a diabetes de tipo 1 é uma doença autoimune: os nossos anticorpos atacam as células do pâncreas responsáveis pela produção de insulina, matando-as. Sem produção de insulina, é uma questão de dias até se morrer. Acontece em todas as idades. Sendo rara, não é raríssima. Ainda são dezenas de milhares de portugueses.

A ignorância tem consequências. Grande parte das pessoas, incluindo médicos, está convencida de que basta um pouco de exercício e uma alimentação regrada. Totalmente falso. Alguém com diabetes de tipo 1, como não produz insulina, sempre que come tem de injectar-se com ela. Ao pequeno-almoço, ao almoço, ao lanche, ou quando come uma maçã a meio da manhã. Sempre. Adicionalmente, para calcular a quantidade de insulina a dar em cada injecção tem de extrair uma gota de sangue para saber a sua glicemia e tem de pesar tudo o que come: o arroz, a fruta, a massa, a batata, tudo o que tenha açúcar ou hidratos de carbono. Se der insulina a mais, vai ter uma quebra de açúcar no sangue que pode ser fatal. É uma causa comum de morte nestas pessoas. Se der a menos, o açúcar dispara, provocando um sem número complicações ao fim de alguns anos (cegueira, amputações, demência, transplantes dos rins, etc.). Por causa disso, deve-se medir a glicemia uma hora depois de cada refeição e fazer as necessárias correcções. Tudo somado, alguém que coma cinco vezes ao dia terá de dar em média umas seis injecções diárias e picar o dedo umas dez vezes. Nunca, verdadeiramente, nos conseguimos pôr na pele dos outros, mas peço-lhe que faça um esforço.

Há dois aparelhos médicos que melhoram não só a qualidade de vida como também o seu controlo: bombas de insulina (inventadas há 40 anos) e monitores de glicemia. A bomba de insulina liga-se ao corpo com um cateter (um tubinho que se espeta na barriga), que tem de ser mudado de três em três dias. Assim, sempre que se administra insulina, não são necessárias injecções. O monitor de glicemia mais comum em Portugal é uma peça que tem um filamento que penetra na pele e se cola no braço, dando leituras aproximadas do açúcar no sangue. Permite um controlo quase contínuo. Vários estudos mostram que com estes dois dispositivos se alcançam resultados muito melhores, diminuindo drasticamente a probabilidade de efeitos secundários graves.

O Estado reconhece estas novas tecnologias e tem feito algum esforço para as disponibilizar. Mas é manifestamente insuficiente. E os custos são suficientemente baixos para ser incompreensível essa insuficiência. Apenas os jovens com menos de 18 anos têm direito quase automático às bombas. Aos adultos, distribuem-se algumas dezenas por ano. A este ritmo, a enorme maioria dos adultos nunca a receberá. Como as mulheres que queiram engravidar têm prioridade, para os homens ainda é mais difícil. Mesmo assim, sei de várias mulheres grávidas que ou não tiveram acesso a bomba ou só a tiveram em fases avançadas de gravidez. Imagine o desespero de uma grávida ao saber que se tivesse bomba conseguiria um muito melhor controlo (o que diminuiria muito a probabilidade de o seu bebé vir a desenvolver a mesma doença). Imagine um rapaz de 25 anos que sabe que provavelmente passará a sua vida a dar cinco, seis ou mais injecções diárias.

Também com os monitores de glicemia há problemas. Desde Janeiro de 2018 que são comparticipados. Mas estão constantemente esgotados. Em todo o país, desde Braga ao Alentejo e chegando aos Açores. Apenas na farmácia da APDP, em Lisboa, o seu fornecimento é regular. Como cada monitor dá para 14 dias e cada receita inclui geralmente dois, todos os meses, há milhares de pessoas a percorrer dezenas de farmácias à procura de uma que os tenha. Ainda há pouco, li um apelo de uma mãe porque o sensor do seu filho vai acabar dentro de cinco dias e não os consegue encontrar em lado algum. Como é que se explica a uma criança que já teve de picar os dedos dez vezes por dia, e que, entretanto, se habituou a não ter de o fazer, que vai voltar a espetar uma agulha no dedo dez vezes ao dia? É cruel.

Estranhamente, se estivermos dispostos a pagar o sensor sem comparticipação, ou seja, despendendo 120 euros por mês, já não estão esgotados. Portanto, eles existem, simplesmente ou o Estado não contratualizou um número suficiente ou há incumprimentos contratuais.

Não há dinheiro para tudo, mas há prioridades. Acredito que o facto de tão pouca gente conhecer a doença, conjugado com o de confundirem com o outro tipo de diabetes (quantas vezes me perguntaram se a minha filha comia muitos doces), levam a que para o SNS isto não seja prioritário. Mas é injusto. Nestes últimos dois anos e meio, conheci gente extraordinária. Pessoas com diabetes que correm ultramaratonas, que levam uma vida absolutamente normal sem nunca se queixarem, campeões em diversas modalidades (Nacho do Real de Madrid, por exemplo). Enquanto sociedade, estamos a falhar a esta gente.

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