Automóveis autónomos, expectativas subordinadas

A expectativa que rodeia a evolução dos carros autónomos aponta-nos para um futuro utópico. Como tal devemos vigiar os impulsionadores desta tecnologia para que não nos conduzam a uma distopia num futuro criado por quem o prevê.

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Mike Blake/Reuters

“É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta frase atribuída a Niels Bohr, que tanto pode ser dele como de um dinamarquês qualquer, serve de mote para uma reflexão sobre o admirável mundo novo que nos é apresentado amiúde na forma de tecnologia de mobilidade autónoma.

Devo começar por dizer que acredito nas projecções que apontam para um aumento da segurança nas viagens de automóvel graças a esta nova tecnologia, reduzindo-se os acidentes e, consequentemente, as vítimas de acidentes rodoviários, um problema de saúde pública da nossa sociedade. Acredito que, brevemente, a mobilidade autónoma atingirá o ponto de maturidade e ficará disponível ao público em geral, que, após um período de desconfiança, passará a compreender que nem todos somos capazes de despender a disciplina e atenção total e permanente que conduzir exige.

Os estudos de mercado que analisam os feelings dos millennials prevêem que a maior parte, senão toda a circulação automóvel, será feita numa economia de partilha em que os carros serão detidos, ou pelos fabricantes ou por uma terceira parte como uma empresa de serviços, isto porque os millennials não se vêem a ter um carro próprio, tal como não se vêem a comprar casa, a ter filhos, a poupar. Até acredito que com alguns deles estas expectativas se cumpram, mas parece-me que à medida que cresçam e tenham outros rendimentos e outras responsabilidades, a "cegueira" passe e fiquem tão aborrecidos como um baby boomer. Ancorar as previsões futuras na apalpação de expectativas de uma massa heterogénea que se catalogou com um nome catchy não me parece muito sólido, ainda mais quando esta geração passou parte da sua vida a atravessar uma recessão a nível mundial e ainda vê bastantes nuvens no horizonte.

Há quem preveja uma diminuição dos automóveis em circulação principalmente pela dinamização da economia de partilha, promovida por pessoas que querem rentabilizar os veículos que apenas utilizam durante uma parte do dia, mas também por consciência ecológica. Mas com a automatização fará sentido haver uma carta de condução que dê autorização que apenas certas faixas etárias se movimentem livremente? Será que com a plena automatização as pessoas estarão dispostas a ter a sua habitação muito mais longe do seu local de trabalho, num local mais barato e calmo, podendo o carro funcionar como uma espécie sala onde o seu utilizador possa descansar ou trabalhar enquanto se desloca, não querendo partilhar esse espaço pessoal com outros? Será que uma maior dispersão das pessoas pelo território viabilizará a eficiência da economia de partilha como nas cidades de hoje?

Tendo isto em conta, ou não, os fabricantes e as empresas de serviços apostam em transformar o automóvel num serviço e não num bem de consumo, o que na teoria parece bastante louvável para bem da sustentabilidade do planeta e da organização das nossas cidades. Mas se esta evolução não for bem acompanhada poderá levar ao aparecimento de monopólios, talvez não à escala global, mas local, se as empresas escolherem não competir entre elas em certos mercados (veja-se o comportamento das empresas de telecomunicação americanas). Poderá levar a que zonas com menor população em que as economias de escala não sejam atractivas o suficiente tenham um serviço pouco satisfatório, tanto a nível da qualidade dos serviços disponíveis, como a nível dos preços praticados. Poderá levar a custos mais elevados por via da centralização das reparações, algo que já acontece hoje em dia com grande parte da chamada tecnologia inteligente, em que apesar de o hardware nos pertencer não temos controlo total da tecnologia, apenas podendo repará-la em lojas e com peças oficiais de custo superior.

E mesmo que os carros sejam vendidos como hoje em dia, o facto de estarem sempre online, para actualizações do fabricante e eventualmente comunicar com outros carros e o ambiente circundante, torna necessário ter bastante cuidado com a protecção da informação privada que capturam para que não aconteçam casos como os que têm vindo recentemente a público sobre as redes sociais. Corremos o risco de a informação sobre o nosso paradeiro, uma das mais sensíveis, possa ser partilhada com terceiros para inúmeros fins que podem infringir os nossos direitos como consumidores e até mesmo atentar contra a nossa segurança e liberdade.

A expectativa que rodeia a evolução dos carros autónomos aponta-nos para um futuro utópico. Como tal devemos vigiar os impulsionadores desta tecnologia para que não nos conduzam a uma distopia num futuro criado por quem o prevê.

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