Com a verdade me enganas

Comecemos pelo cartaz. Robert Redford recortado num fundo branco. Dir-se-ia solitário. Como no cartaz de Jeremiah Johnson, um dos sete filmes que interpretou sob a direcção de Sydney Pollack e que vem à memória numa enigmática cena, quando em fuga da polícia, surge a cavalo envolto numa manta no topo de um monte, com uma estrada em baixo onde desfila grande número de carros de polícia ao som das sirenes.  Ao lado a tagline (em tradução portuguesa): esta história é maioritariamente verdadeira.

É o suficiente para que se duvide de O cavalheiro com arma como um biopic. Ou, se quisermos, todas as biografias são compostas. E o filme subtilmente assume a biografia de Redford quando fala explicitamente de Forrest Tucker (1920-2004), o que é muito visível na sinopse das suas fugas muito ligada à imagem de Redford em diferentes filmes, embora na realidade só recorra a um clip, de Perseguição Impiedosa de Arthur Penn. David Lowery, no entanto, declarou, em entrevista a Jack Giroux no blog Slashfilm em 1/10/2018, que percebeu que nem a verdadeira versão criminal nem a versão jornalística do que aconteceu cairiam bem naquilo que Robert Redford era como actor e acabou, depois de dezenas de versões, por escrever aquilo que estaria na cabeça de Forrest Tucker em oposição ao que realmente fez. “Havia uma linha ténue entre as duas versões, mas era uma linha muito importante e essa linha permitiu-me escrever um filme que era a versão em que Robert Redford poderia ter o melhor desempenho”.

Muito inteligentemente em nenhuma cena se vê realmente a arma, quando abre o fato ou na sua mão, e em algumas das cenas Redford, pelo contrário, simula-a com os dedos. No assalto ao banco que é o mais detalhado na planificação cinematográfica, em que o polícia que o vai perseguir, John Hunt (Casey Affleck), casualmente está presente – a ironia do nome é um elemento da própria realidade e não um artifício de argumentista – a descrição posterior do gerente inclusivamente deixa dúvidas (“vi a arma ou parece que a vi”). Como que a dizer, num momento em que dos Estados Unidos ao Brasil se apela a armar os cidadãos, que a verdadeira arma está na mente e na possibilidade de pensar.

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David Lowery não tinha ainda feito 38 anos quando o filme estreou nos Estados Unidos, mas parece bem à vontade ao dirigir um actor de 82 anos que desempenha uma personagem de 79 anos quando do último assalto que o levou à prisão onde viria a morrer aos 84.

Naturalmente O cavalheiro com arma, mais que sobre a velhice, é sobre a vida de que o protagonista não abdica (um advogado que o defendera dirá ao polícia, que o tenta apanhar, que ele não procurava um modo de vida, mas a vida). Num diálogo com Jewel (Sissy Spacek), com quem estabelece uma relação amorosa, o casal mostra como agir é a forma de continuarem vivos. De certa maneira, como o criminoso que ela ignora que ele seja, até serem apanhados, no limite pela morte. Quando Waller (Tom Waits), um dos velhotes do grupo que assalta bancos, lhe pergunta à saída da porta de sua casa, qual o significado de ter escolhido uma casa com vista para o cemitério, ele verdadeiramente nem responde.

De certa maneira viver para Forrest Tucker terá sido também encontrar uma via em que a “impressão digital” de alguém que é único se pode deixar ou ocultar. Por isso quando renuncia a fugir da prisão e regressa, cumprida a pena, para viver pacificamente uma vida conjugal, é como se não fosse ele, até ao dia em que se despede de Jewel e “volta ao trabalho”, expressão com que David Grann abre a crónica de 2003 do The New Yorker em que o filme se inspira.

Mas uma narrativa implica sempre um diálogo e o contraponto de Forrest/Redford acaba por ser Hunt/Affleck, para lá da lógica cinematográfica de polícias e ladrões. É Hunt que se interessa por ele, e a sua investigação mais que policial é narrativa, ele vai procurar conhecê-lo, vai dar-lhe importância ao conectar crimes sem violência e de pouca monta a que aparentemente ninguém estava a ligar.

Quando chega a altas horas a casa no seu dia de anos e a mulher e os filhos pequenos ensonados lhe cantam os parabéns parece-nos que estamos a ver onde isso leva – o polícia obcecado que não liga à família por exacerbada consciência do dever. Mas passado o preâmbulo da apresentação das personagens com que cuidadosamente Lowery compõe a história que quer contar, o que vamos ver é um pai que protege os filhos e dialoga com eles sobre a própria investigação, e que continua a namorar a mulher.

Num dos assaltos Forrest que vira Hunt falar sobre a investigação na televisão deixa-lhe uma nota escrita (numa nota de banco não roubada) – constituindo um verdadeiro acto de linguagem - que Hunt lhe virá a devolver ao visitá-lo no hospital, onde ele está depois de ferido e detido. Antes no bar onde Forrest e Jewel namoram e Hunt e a mulher Maureen (Tyka Sumpter) vão beber um copo, quando Hunt vai ao quarto de banho limpar uma nódoa na gravata, Forrest reconhecendo a face que vira na televisão interpela-o deliberadamente. “Eu sei o que estou a fazer” é a última frase de Hunt.

Forrest e Hunt confirmam-se mutuamente nas suas identidades e isto parece bastar-lhes num contexto de incerteza e anonimato que a sociedade complexa em que lhes é dado viver oferece. De certa maneira as invasões/prisões de Forrest são o reverso das suas evasões. Como em Onde Está a Liberdade? (1954), filme pouco conhecido e mal-amado até pelo próprio autor Roberto Rossellini, numa em todo o caso importante ponte entre duas fases brilhantes do cinema italiano, o neorrealismo e a comédia social. Nesse filme um chapliniano Tótó, invade a prisão usando o plano para a evasão que não fora concretizada, ele que é também um cavalheiro decepcionado com a pobreza das relações que existem “cá fora”.

O que seduz em O cavalheiro com arma, se bem que por outro lado perturba e até nos desarma, é a ausência de explicação no ponto de vista do narrador (ou do próprio protagonista). Forrest não se deixa confinar num ponto de vista exterior e redutor. Ele vivencia a empatia e até a compaixão, ao olhar nos olhos e sorrir tanto em momentos de assalto como quando é preso. Nesse sentido ele é definido para lá de qualquer juízo valorativo como tendo um estilo, e pode ser visto com compreensão, até aceitação, o que não implica qualquer absolvição do ponto de vista da lei pela qual Hunt dá a cara.

O diálogo com Jewel é outro dos eixos orientadores do filme e expressa-se, diria de uma forma definitiva, quando ela lhe pergunta o que faz e ele escreve num papel que é ladrão, a que ela com um semi-sorriso responde que não acredita. Se fosse verdade porque lhe diria? E ele responde simplesmente, porque tem confiança. E, porém, quando ele acaba por ser preso ela na realidade não sabia a que actividade ele se dedicava. A cena do quase roubo dos dois numa joalharia é, para não dizer mais, uma verdadeira jóia, que é também o nome dela. Nenhum diálogo provavelmente abarca completamente o outro e o que se age por contraditório que seja é mais definitivo que o que se diz. Neste plano em que a filosofia não ofusca a insustentável leveza do ser torna-se um enigma perceber a vida em estado permanente de inacabamento.

Para atingir este plano diríamos filosófico O cavalheiro com arma não poderia ser uma pura obra de ficção e, portanto, teria que radicar num Forrest (ou Redford) real e a sua história ser “maioritariamente verdadeira”.

Psiquiatra e crítico de cinema

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