Os perigos das mordaças politicamente correctas

É pouco inteligente pensar que proibindo Mário Machado de ir à TV se luta contra a extrema-direita. Ela existe e estou seguro que está devidamente vigiada.

O tema está na ordem do dia e pretendo modestamente colaborar para a sua reflexão, trazendo a minha perspectiva que, jurídica por formação, é necessariamente política, atendendo à natureza do objecto. Devo, por isso, para ser transparente, afirmar que ideologicamente me situo no que é apelidado de “centro-esquerda” (a “social-democracia” no sentido originário do termo e com as características que admiro nos países nórdicos) e que abomino as concepções autoritárias, ditatoriais (de direita ou de esquerda), fascistas e racistas. Amo também as liberdades fundamentais vertidas na Constituição e nos textos internacionais que nos vinculam e não tenho receio algum de ser “politicamente incorrecto”. Não recebo qualquer contrapartida monetária pelo que escrevo no PÚBLICO, o que faço com o maior gosto.

Obviamente que o assunto é a análise jurídico-política da entrevista a Mário Machado, no âmbito da rubrica Diga de sua (in)justiça, que tem por autor Bruno Caetano e é emitida no programa da TVI Você na TV, apresentado por Manuel Luís Goucha e Maria Cerqueira Gomes. Vou passar à frente, mas registando-o, que está em curso uma “guerra de audiências” entre este programa e um concorrente, na SIC, com estreia hoje, dirigido pela ex-colega de Goucha, Cristina Ferreira. É evidente que não foi inocente o convite a Machado e que isso se inseriu numa técnica de boosting das audiências.

Vivemos num Estado de Direito democrático em que a liberdade de expressão e de informação são esteios essenciais (artigos 37.º e 38.º da CRP). É verdade também que – embora de modo discutível, mas com o que concordo – a nossa Lei Fundamental, certamente para evitar que se repita a longa noite do salazarismo/marcelismo, proíbe a existência de organizações de qualquer tipo que perfilhem ideologia racista ou fascista (art. 46.º, n.º 4). Por isso, o Tribunal Constitucional (TC) – órgão de soberania competente – não pode admitir a constituição de partidos com esta ideologia (cf. art. 8.º da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22/8, que reproduz o comando constitucional: “[n]ão são consentidos partidos políticos armados nem de tipo militar, militarizados ou paramilitares, nem partidos racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.”). A existência do actual PNR (Partido Nacional Renovador) só é possível porque os seus estatutos e declaração de princípios ou programa político submetidos àquele Tribunal não o defendem (art. 15.º, n.º 2 da referida Lei), ao menos de modo expresso, bem como o próprio símbolo, muito próximo do facho, foi convertido numa tocha.

A decisão do TC foi inteligente e juridicamente inatacável. Como dizemos em Direito, “o que não está nos autos, não está no mundo”, sendo exacto que os Conselheiros do TC são gente avisada: é claro, pela actividade política concreta do partido, que o PNR defende ideais fascistas e racistas, embora fazendo-o de modo que não implica a prática de crimes e de jeito velado, pelo que se pode afirmar que, ao menos formalmente, a CRP não é violada. E se se admite que o status quo permaneça, é porque se sabe que, assim, os inimigos da democracia estão enquadrados, manifestam as suas ideias dentro do quadro normativo existente, esvaziando-se uma proibição radical, mas que seria pouco inteligente. Como diz o nosso Povo, “o fruto proibido é o mais apetecido”.

Bem sei que a comparação é muito diversa, mas sendo Portugal uma República e esta forma de governo constituindo um dos limites materiais à revisão constitucional, não existe – e bem – o PPM (Partido Popular Monárquico)? Uma racionalidade instrumental-estratégica (que não é a minha, pois defendo valores, logo, uma racionalidade axiológica) justifica este tipo de posicionamento dos órgãos do Estado, desde logo na admissão, porque não proibida por lei, de manifestações dos movimentos de extrema-direita.

Ora, a liberdade de expressão tem, sem dúvida, limites. Se ouvirmos o programa em causa e não nos limitarmos ao diz-que-disse, o convidado expôs os seus pontos de vista, com algum contraditório por parte dos apresentadores – nomeadamente a última pergunta que Goucha lhe colocou sobre a sua orientação sexual foi bastante directa. É óbvio que Machado respondeu de jeito politicamente correcto. É óbvio também que a circunstância reclamaria maior contraditório, nomeadamente por especialistas de História ou Direito, p. ex. E aí, andou mal a TVI, assim como ao apresentar-se Machado como defensor, apenas, de “ideias polémicas”. É certo que o próprio se referiu às condenações transitadas em julgado de que foi alvo, embora o caso de Alcindo Monteiro devesse ter sido colocado com toda a frontalidade.

Não foi cometido qualquer dos crimes de discriminação, de incitamento ao ódio ou à violência, bastando para tal compulsar o Código Penal. Foram expendidas posições das quais discordo totalmente, mas que têm a virtualidade de provocar o debate. E em democracia, tudo se pode discutir, desde que isso não constitua a prática de delitos ou o incumprimento de normas administrativas que regulamentam, neste caso, a televisão. Mesmo estas consideradas, não vislumbro vulneração, mas admito que a minha especialidade é o Direito Penal. Daí que me pareceu inusitada a comparação do ministro da Defesa (porquê ele?) que, por rectas contas, deu um relevo a Mário Machado que este de todo merece.

Devemos ser objectivos e frios na análise de episódios como este. A CRP e as leis, em minha perspectiva, não foram violadas, pelo que não antevejo qualquer condenação nesta sede.

Se acho que o tema é interessante e que devia ser levado à televisão? O tema não me interessa minimamente e não quero nunca para o meu país ou para outros (veja-se o que escrevi aqui no PÚBLICO sobre Bolsonaro) uma ditadura ou regime autoritário, repito, de direita ou de esquerda.

Se devia passar na TV? Isso já se prende com critérios editoriais que, não sendo violadas as leis, cabem na liberdade de informação, em especial num canal privado. Se me incomoda que pessoas como Machado, Quintino Aires e outros em que o programa em causa é pródigo tenham tempo de antena, de tal modo que se pode dizer que a TVI, em regra, vem adoptando uma linha de sensacionalismo nas notícias sobre crimes e de apelo a movimentos de “lei e ordem”? Sim, incomoda. Por isso não vejo, a não ser quando surgem episódios destes que profissionalmente me interessam. E o que é a CMTV e o Correio da Manhã? Mais uma vez, a TVI está a enveredar pelo sensacionalismo pé-de-chinelo. Mas isto é novidade para alguém? Não vejam, então. Se não houver audiência, por certo programas destes desaparecem. Mas há, pelo desejo de voyeurismo e porque o “crime está na moda” e apela aos sentimentos mais básicos dos cidadãos. Educação e cultura, portanto. Explicação do sistema de justiça, porque funciona assim e não de outro modo.

O que me parece pouco inteligente é pensar que proibindo Machado de ir à TV se luta contra a extrema-direita. Ela existe e estou seguro que os serviços competentes da República a têm devidamente vigiada. Somos – felizmente – uma quase ilha numa Europa que deriva perigosamente para estes movimentos nacionalistas, intolerantes, racistas, xenófobos e a História tem-nos ensinado onde isto conduz. Mas não é varrendo o lixo para debaixo do tapete que ele desaparece. Não. É enfrentando-o, discutindo-o. Em todo o lado, a começar pelas escolas. É valorizar a História, criar uma disciplina obrigatória de “Noções Gerais de Direito” em que este e outros temas sejam abordados. A informação, a cultura, os exemplos históricos, a argumentação convincente são os instrumentos dos democratas que rejeitam liminarmente o racismo e o fascismo. A mordaça na boca, não. Esse é o instrumento daqueles contra cujas ideias eu e, creio, a generalidade dos meus concidadãos, queremos lutar até ao nosso último suspiro.

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