É "moralmente lícito" retirar o útero? Igreja não devia imiscuir-se nestas questões, respondem médicos

Se o útero não for capaz de sustentar gravidez, a histerectomia é “moralmente lícita”, pronunciou-se o Vaticano. Que continua, porém, a condenar a remoção do útero e a laqueação de trompas mesmo que para evitar gravidez que ponha em risco a vida da mulher.

Foto
LUSA/MAURIZIO BRAMBATTI

Até onde deve ir a Igreja no seu pronunciamento sobre questões de natureza médica? “O menos possível, para evitar disparates”, responde o obstetra Miguel Oliveira da Silva, a propósito da posição assumida pelo Vaticano sobre a licitude moral das histerectomias (remoção do útero). Num avanço relativamente à posição assumida em 1993, o Papa Francisco declarou, quinta-feira, a “licitude moral” das histerectomias, mas apenas nos casos em que o útero se mostra incapaz de sustentar uma gravidez e em que os médicos estejam certos de que aquela redundará num aborto espontâneo “antes da viabilidade fetal”.

Nos restantes casos, o Vaticano mantém que a remoção do útero enferma de “ilicitude moral”, mesmo naqueles em que a retirada do útero vise “tornar impossível uma eventual gravidez que pode comportar algum risco para mãe”, conforme se lê no documento divulgado pela Congregação para a Doutrina da Fé, por indicação do Papa Francisco.

A diferença entre uma situação e outra é que, no primeiro caso, “sabe-se que os órgãos reprodutivos não são capazes de manter um concebido até à viabilidade, ou seja, não são capazes de manter a sua função procriadora natural”. Assim, “a intervenção médica não pode ser julgada como anti-procriativa”. Dito por outras palavras, “retirar um sistema reprodutivo incapaz de levar adiante uma gravidez não pode ser qualificado como esterilização directa, que é e permanece como intrinsecamente ilícita como fim e meio”.

No segundo caso, a retirada do útero e a laqueação das trompas, “mesmo quando feitas com o propósito de tornar impossível uma eventual gravidez que pode comportar algum risco para a mãe”, não são eticamente aceites pela Igreja, porquanto “o objecto próprio da esterilização é o impedimento da função dos órgãos reprodutivos”, o que redunda “na rejeição da prole”, ou seja, “é um acto contra o bonum prolis”.

Mas, mesmo que haja evidência médica de que o útero não é capaz de manter uma gravidez até à viabilidade do feto, a declaração de licitude da histerectomia não exclui, ressalva o Vaticano, outras opções como “recorrer aos períodos inférteis ou a abstinência total”. Caberá assim a cada casal, "em diálogo com o médico e com o director espiritual, escolher o caminho a seguir".

Histerectomia não é contraceptivo

“Há mulheres que têm ciclos irregulares e que nunca sabem quando é que vão ovular. E passa pela cabeça de alguém que essa mulher vá andar agora a fazer xixi para uma fitinha todos os dias para saber quando é que vai ovular?”, indigna-se Miguel Oliveira da Silva. Para aquele que foi o primeiro presidente da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), entre 2009 e 2015, “não faz qualquer sentido que em 2019 a Igreja continue a condenar a contracepção hormonal”.

De resto, lembra ainda o obstetra-ginecologista, “para a remoção do útero tem de haver indicações médicas – um útero com situação oncológica não tratável de outra forma, por exemplo - e ninguém faz uma histerectomia como método contraceptivo”. Por outro lado, “em Portugal, qualquer mulher com mais de 25 anos pode fazer laqueação de trompas a seu pedido, por vontade própria”.

Logo, “em situações médicas concretas, quanto menos o Vaticano se meter, melhor”, porque “só os médicos saberão avaliar a situação no contexto do projecto familiar e da mulher”. “O Vaticano tem questões muito mais sérias e graves com que se preocupar em termos de moral sexual”, aconselha o autor do livro “A Sexualidade, a Igreja e a Bioética (Caminho, 2008).

Poder-se-á pensar que a posição do Vaticano não vincula ninguém. Mas, na prática, as consequências de um pronunciamento destes podem não ser inócuas. Isto porque, segundo Miguel Oliveira da Silva, alguns médicos, sendo católicos, levam a objecção de consciência “a um ponto tão radical que acham que enviar uma eventual grávida para uma laqueação de trompas para outro colega que se predisponha a fazer essa cirurgia já vai contra a consciência deles e, portanto, não o fazem, apesar do que diz a lei”.

Um "contra-senso"

Recordado de quando, em 2015, no regresso de uma viagem às Filipinas, o Papa Francisco declarou que “os bons católicos não devem procriar como coelhos”, o também obstetra-ginecologista Jorge Branco encara este pronunciamento de quinta-feira como “um contra-senso”.

“Não percebo isto, quando me parece que o Papa diz o contrário”, nota, desvalorizando, porém, eventuais consequências práticas. “Não conheço nenhum ginecologista que se recuse a fazer uma laqueação de trompas, que é um procedimento que dura dez minutos, se isso for para ajudar a evitar uma gravidez que possa pôr em risco a vida da mulher”, reage o ex-coordenador do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, para qualificar como “completamente irreal” pedir às mulheres que não tomem a pílula.

Do mesmo modo, “nenhum médico vai deixar de ajudar uma mulher a evitar uma gravidez, por exemplo, em casos de múltiplas cesarianas anteriores, em que o útero pode romper e, não só morre o feto, como fica em risco a vida da mãe”, reforça.

Em 2015, Francisco defendeu a paternidade “responsável”, mas nunca rejeitou o desaconselhamento da contracepção artificial para os católicos que resulta da encíclica Humanae Vitae, outorgada por Paulo VI. Deste documento, de 1968, resulta que a “paternidade responsável” deve assegurar-se com recurso à abstinência sexual durante os períodos férteis da mulher.

O PÚBLICO tentou obter uma reacção da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição. 

Sugerir correcção
Ler 10 comentários