“O circo tradicional está a morrer”. Um grupo de artistas lançou uma petição para salvá-lo

Pedem “maior regulação e fiscalização da actividade do artista de circo e promoção de políticas públicas culturais que promovam o circo tradicional”.

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PAULO PIMENTA

Aos 45 anos e depois de uma vida inteira dedicada ao circo, Susana Noronha vai deixar a arte. Faz “um pouco de tudo”, mas é ao trapézio e à locução que mais se dedica. No fim da temporada, o plano é estacionar a caravana, procurar um trabalho e assentar arraiais. O objectivo: “Dar um futuro aos filhos.”

Com o 9.º ano de escolaridade, a artista tem muita experiência de circo e pouca de outra coisa qualquer. Mas não tem dúvida que arranjará uma ocupação. “Trabalho encontro, um emprego que me faça sentir bem comigo mesma é que acho que não”, lamenta. E prossegue: “O que me faz sentir bem é as artes e espectáculos. É aquilo que sei fazer e que fiz a vida toda. Quando me retirar vou ter de fazer coisas que não me vão consolar a alma.” Mas tem de ser. O trabalho sem vínculos deixou Susana numa situação precária. “Tenho de ter 14 anos de descontos para um dia ter reforma e não ficar dependente” dos filhos, diz. A outra opção — continuar no circo — é impensável. “Se continuar, fico sem reforma, sem trabalho e vou fazer de palhaça.”

Susana Noronha é uma das subscritoras da petição pública que pede a “maior regulação e fiscalização da actividade do artista de circo e promoção de políticas públicas culturais que promovam o circo tradicional”. Até este sábado, o documento tinha sido assinado por 114 pessoas — são precisas mil para ser apreciada em comissão parlamentar.

No texto que acompanha a petição, alegam a “vulgarização do trabalho ilegal ou clandestino”, que é “potenciada pela falta de apoios” e pela “ausência de acções inspectivas” da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Para que as condições melhorem pedem uma inspecção desta autoridade “de âmbito nacional”.

Contactada pelo PÚBLICO, a ACT diz que “não dispõe de informação específica" sobre estes artistas. Assegura, no entanto que, desde 2015 “já desenvolveu 104 acções inspectivas no sector das actividades do espectáculo e respectivas actividades de apoio — no qual se inclui, entre outros, o circo —, que abrangeram 237 trabalhadores (131 homens e 106 mulheres)”. Dessas inspecções resultaram 18 contra-ordenações. A ACT não disponibilizou informação sobre o desfecho desses processos. Quanto à sua potencial intervenção, a autoridade sublinha que trata esses pedidos de acordo com três critérios: “gravidade”; “oportunidade”; “fiabilidade e pertinência da informação fornecida”. 

“O circo tradicional está a morrer”, lamenta Dirce Noronha Roque, porta-voz do grupo de uma dezena de artistas que promove a petição. Pelo que também pedem que se faça uma análise ao funcionamento da escola móvel de forma a dar-lhe “maior cobertura e celeridade”, que se criem “condições para a melhoria do funcionamento dos serviços internacionais de segurança social” para os colegas que vão temporariamente trabalhar (e fazem descontos) para outros países e que se desenvolvam políticas públicas que "estimulem o acesso à actividade do circo tradicional".

Na petição, os artistas queixam-se ainda que "a falta de divulgação de informação relativa à forma de funcionamento do Registo Nacional de Profissionais do Sector das Actividades Artísticas, Culturais e de Espectáculo (RNPSAACE) tem vindo a arredar estes profissionais, que dedicaram uma vida inteira à actividade circense e às artes do espectáculo, o acesso a esta certificação". A Inspecção Geral das Actividades Culturais (IGAC) explica que fazê-lo pode ser útil "ao nível da valorização profissional e técnica e na obtenção de certificados comprovativos do exercício da profissão". Não há profissionais de circo registados. 

Um meio precário

“Isto é um meio muito fechado. Uns são família, outros cresceram juntos. Não há aquela distância entre empresário e artista. Se há um que exige o contrato, há outro que não. Aqui [em Portugal] até ninguém exige, porque o mercado é tão pequenino que nem se coloca essa questão”, diz  Dirce Noronha Roque sobre a precariedade da profissão. E isso causa problemas: “Os artistas não descontam porque não têm contratos. Não havendo contratos, não há descontos. Não havendo descontos, não há reformas.”

Diz-se particularmente preocupada com aqueles que, como ela, “estão parados, não têm idade para reforma mas não têm onde trabalhar”. Berta Cadinali, que aos 62 anos já fez contorcionismo, malabarismo, trapézio, animação, é outro desses exemplos. “Um artista de circo chega a uma certa altura da vida e não pode trabalhar mais”, lamenta. “Trabalhei 50 anos e não tenho reforma. ” 

Apesar das complicações, a porta-voz dos artistas sublinha que é preciso ver “o outro lado da questão”. Nota que “o circo vive exclusivamente da bilheteira”, pelo que “se não houver apoios, a empresa não pode fazer o contrato”. Susana Noronha concorda. “Eles [os patrões] já se vêem muito aflitos. Fazem-nos pagar tudo. Luz, água, terrenos, instalação, música, direitos de autor. Antes de entrarem para uma terra já têm uma exorbitante despesa. Depois chegam duas ou três pessoas ao circo [para assistir] e às vezes temos de mandá-las embora.”

E é disso mesmo que se queixa Luísa Cardinali, dona e artista de um circo com o mesmo nome. "Aqui, só se trabalha três dias por semana. No estrangeiro já se consegue trabalhar quatro ou cinco dias. E os directores têm [na mesma] a despesa dos camiões, gasóleo, terreno, água e luz." Quanto aos artistas, reconhece-lhes alguma razão, mas lembra que para eles "é tudo de graça". Feitas as contas "ganham ordenados muito elevados". 

"Não se pode ter contratos. Alguns têm recibos verdes", explica Luísa Cardinali. "Mas quando não vêm pessoas ao circo como fazemos?" Para a antiga trapezista, este declínio tem uma causa: a abolição dos animais. Diz Luísa que há menos gente a ir aos espectáculos desde que foi imposta a regra. A situação está tão má que até pondera só volta a abrir no próximo Natal.

Quanto a possíveis apoios públicos, defende que o circo tradicional devia ter direito a subsídios como aqueles que as companhias de outros países recebem e uma maior compreensão por parte das autarquias onde se fixam para apresentar os espectáculos. 

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