Pescadores do Guadiana passam a beneficiar de um regime de excepção

Ficam dispensados da venda exclusiva em lota, podendo vender o pescado directamente ao consumidor.

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Pedro Cunha

Os pescadores do rio Guadiana passam a poder vender directamente ao consumidor, ficando dispensados da obrigação da transacção em lota. Esta medida de excepção, justificada pelas características específicas da zona, já se aplica nalgumas zonas do rio Minho desde há oito anos. A portaria, que deverá entrar em vigor no dia 1 de Fevereiro, foi apresentada no fim-de-semana, em Mértola. “Procurámos uma situação equilíbrio”, afirmou o secretário de Estado das Pescas, José Apolinário, destacando que a alteração legislativa visa ir ao encontro das reivindicações do sector da pesca e dos autarcas locais.

A nova portaria reconhece as “características muito particulares” da sub-região, de pesca sazonal, quase em vias de extinção, em causa. A deslocação à lota de Vila Real de Santo António, ou posto de venda mais próximo, refere o documento, pode chegar aos 50 quilómetros. Por isso, o transporte traduz-se numa “perda significativa na qualidade do pescado”, e com dificuldades acrescidas nos custos de produção.

O presidente da Câmara de Alcoutim, Osvaldo Gonçalves, exemplifica: “Chega-se a vender tainhas por um cêntimo ao quilo, na lota de Vila Real de Santo António - a espécie não tem procura”. Por outro lado, salienta, nos restaurantes locais, este peixe faz delícias dos turistas que procuram os pratos típicos.

A comunidade piscatória do Guadiana encontra-se reduzida a cerca de três dezenas de pequenas embarcações. Alcoutim tem apenas quatro pescadores legalizados. Os restantes distribuem-se por Mértola, Penha da Águia, Pomarão, Guerreiros do Rio e outras localidades do nordeste algarvio e baixo Alentejo.

A enguia, uma das espécies nativas, começou agora a ser pescada, no dia 1 de Janeiro, depois de um período de três meses de defeso. O preço actual varia entre os 15 e os 18 euros/quilo. A Direcção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), entretanto, só recebeu 23 pedidos de licenças, tendo sido emitidas 18 autorizações. A assinatura das cinco licenças que faltam, informou a Secretaria de Estado das Pescas, está dependente das vistorias de segurança das embarcações e de outras formalidades. Uma das condições exigidas, no pedido de renovação da licença, é o documento comprovativo de vendas em lota com valor mínimo a rondar os 7 mil euros/ano (12 salários mínimos). “Não faz sentido essa exigência, porque se trata de actividade artesanal, de subsistência, pouco rentável”, reclama o presidente da Câmara de Mértola, Jorge Rosa, relacionando esse facto com a redução progressiva da comunidade piscatória. A maioria dos profissionais ronda os 60 anos.

A nova proposta legislativa altera o regime vigente, facultando aos pescadores a possibilidade de “indicarem rendimentos inferiores”, por se tratar de uma actividade com carácter sazonal (artigo 4.º, n.º3). Assim, no caso das espécies capturadas ao longo de apenas seis meses, o valor a considerar para efeitos de emissão de licença será 3500 euros/ano. Durante esta semana, adiantou José Apolinário, a proposta “fica a aguardar os contributos dos interessados, que reclamaram [durante o debate] que ficasse mais explícita a questão da sazonalidade”.

Outra das alterações legislativas diz respeito à possibilidade de os pescadores passarem a poder efectuar as vendas directamente ao consumidor final ou aos estabelecimentos comerciais, desde que não excedam os 30 quilos por comprador. Porém, não estão dispensados de “pesar e declarar todo o pescado vendido”. Por conseguinte, mantém-se a obrigação de emitir factura, e de comunicar, através da câmara ou por meios individuais, à Docapesca, até ao dia 15 de cada mês, o registo das vendas. Nos cinco dias seguintes, esta entidade transmite a informação à segurança social e autoridade tributária.

Por resolver está ainda a situação particular dos cinco dos pescadores de “águas internas” que operam no troço do rio, a montante de Mértola - zona que está sob a jurisdição do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas/Agência Portuguesa do Ambiente, sujeita a outras normas.

Jorge Justino é um dos quatro pescadores de Alcoutim que se mantêm fiéis à tradição da terra. “Tenho 55 anos, sou dos mais novos. Isto dá pouco, mas o que vou fazer com esta idade”, questiona, sublinhando a importância do “regime de excepção” que permite a venda directa aos restaurantes locais, que valorizam o pescado.

“Não me passaria pela cabeça ter de importar peixe para oferecer um ensopado de enguias”, diz o autarca Osvaldo Gonçalves, enfatizando a necessidade de manter a pesca artesanal. A lampreia, a par da enguia, completa o leque dos pratos mais procurados na zona. Porém, a diminuição do ciclo de cheias no Guadiana - depois dos anos de seca e da construção da barragem do Alqueva - tornou a espécie cada vez mais rara.

Invasores ou refugiados?

A corvina americana e o caranguejo azul são duas das novas espécies, ambas originárias da costa lesta da América do Norte, que invadiram o Guadiana, nos últimos dois anos. “Questiono-me se serão espécies invasoras ou refugiadas”, observa a vice-reitora da Universidade do Algarve (Ualg), Alexandra Teodósio, lembrando que nos EUA estas espécies estão a ser objecto de sobreexploração.

Ricardo Gonçalves, pescador da Foz de Odeleite, tem sido um dos colaboradores da Ualg no estudo de investigação científica que está a ser coordenado por Alexandra Teodósio. “O caranguejo azul é um espectáculo, melhor do que a sapateira”, diz, referindo-se ao sabor do crustáceo, que foi referenciado pela primeira vez na zona no ano passado.

Qual será comportamento destas espécies invasoras no Guadiana, face à inexistência de predadores naturais? A questão ainda não tem resposta, mas há uma certeza: são espécies com potencialidades comerciais: “Chegou a atingir o preço de 14 euros/quilo na lota, em Agosto”, adiantou o pescador, referindo-se ao caranguejo azul. “O maior que apanhei pesava 724 gramas”. Entretanto, Ricardo Gonçalves colaborou com o chef Leonel Pereira (do restaurante São Gabriel, com uma estrela Michelin), para levar o produto a outros mercados.

A corvina norte-americana ou corvinata real (cynoscion regalis) surpreendeu a comunidade cientifica em 2016, quando surgiu pela primeira vez no Guadiana. “São espécies novas que proporcionam novas oportunidades”, diz Alexandra Teodósio, adiantando que estes exemplares “estão a sofrer grande pressão [pesca intensiva] nos sítios originais” e aqui estão, agora, a fazer a multiplicação da espécie.

Uma tese de mestrado em Biologia Marinha, da autoria de Inês Cerveira, descreve assim este peixe. “É mais pequena que a corvina nativa, mas mais agressiva no comportamento alimentar - come um leque mais variado de presas de grandes dimensões”, adianta Alexandra Teodósio, coordenadora da tese, ainda não apresentada.

Ricardo Gonçalves, da terceira geração de uma família de pescadores, desabafa: “Isto é tudo muito novo para nós”. No estuário do rio Sado também há registos de capturas de corvina americana. Como é que da América veio parar a Portugal? Pode ter chegado, admitem os investigadores, depois de ter navegado, enquanto larva, nas águas de lastro de um navio que cruzou o Atlântico.

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