Uma garrafa de gin que aquecia os lisboetas por dentro e por fora

A descoberta de garrafas antigas de gin em Lisboa pode ajudar-nos a perceber melhor o consumo desta bebida no século XIX. As garrafas serviam, muitas vezes, também como botijas de água quente.

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Uma das garrafas encontradas na Rua do Salitre (à direita) e uma outra encontrada no Tejo Miguel Manso
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As garrafas tinham a inscrição "Wynand Fockink, Amsterdam" Miguel Manso
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As 77 garrafas da Rua do Salitre estão armazenadas em sacos Miguel Manso

Lembra-se de como, há uns quatro ou cinco anos, toda a gente passou de repente a perceber imenso de gin? A bebida, que por cá tinha pouca ou nenhuma atenção, saltou para a ribalta e, quase da noite para o dia, abriram dezenas de bares temáticos e escreveram-se outros tantos textos que elevaram o gin aos píncaros.

A história dessa conquista recente já mereceu extensa crónica, mas o consumo de gin em Portugal é bem mais antigo – e essa história ainda está por escrever. Uma descoberta arqueológica recente pode dar uma ajuda.

No subsolo de um prédio da Rua do Salitre, em Lisboa, apareceram 126 garrafas de grés datadas de meados do século XIX. As garrafas estavam em cacos e o seu conteúdo há muito desapareceu, mas os arqueólogos Vanessa Filipe e José Pedro Henriques conseguiram descortinar que 77 continham gin holandês (genebra) e 49 foram recipiente para água gaseificada alemã. Sabe-se isto através de inscrições no grés, que funcionam como rótulos, à falta dos originais em papel já desintegrados. “De gin só temos esta marca, que vem de Amesterdão. Mas de água do Reno identificámos 17 marcas”, explica Vanessa Filipe.

Nas garrafas de gin a inscrição indica Wynand Fockink, uma marca holandesa de licores e genebras criada em meados do século XVIII numa destilaria que já datava de 1679. E que ainda hoje existe, com um bar aberto no centro de Amesterdão e produção própria.

Encontrar estes objectos foi uma sorte, explicam os arqueólogos da empresa Cota 80-86. O Plano Director Municipal de Lisboa (PDM) estabelece que não são obrigatórias escavações arqueológicas em obras na Rua do Salitre, apenas o acompanhamento dos trabalhos por arqueólogos. Ora, como a rua é estreita, o empreiteiro não conseguiu usar uma máquina para escavar, pelo que o trabalho foi feito à mão. E assim se salvaram as garrafas que, de outra forma, muito provavelmente teriam ido para o lixo.

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“Não temos vestígios de que aquilo fosse uma taberna”, continua Vanessa. José Pedro Henriques explica que é muito difícil saber com exactidão onde eram as tabernas e bordéis da cidade porque é raro aparecerem vestígios. Ainda assim, sabe-se que a Rua do Salitre foi uma zona de entretenimento – com teatros, circos e até praça de touros – até ao fim do século XIX. “Como encontrámos tantas garrafas, isso leva-nos a pensar que era uma zona de armazém”, diz Vanessa Filipe.

Botijas de água quente

A descoberta destas garrafas não é um facto extraordinário por si só. “Garrafas com legendas semelhantes são frequentemente identificadas um pouco por toda a parte”, escreveram os investigadores João Sequeira e Tânia Casimiro, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH), a propósito de outras garrafas que encontraram em bancos de areia do Tejo, perto de Almeirim, em 2015.

Além disso, “há uma prática recorrente de reutilização destas garrafas”, explica Vanessa Filipe. Muitas delas foram usadas como botijas de água quente e facilmente se encontram várias à venda com essa designação em sites de classificados. “O grés, como é altamente isolante, mantém a água quente lá dentro. E também mantém coisas frias”, sustenta José Pedro Henriques, acrescentando que o uso deste material em garrafas começou a decair “no início do século XX”, sendo definitivamente suplantado pelo vidro.

O que é mais relevante nesta descoberta é a hipótese que ela abre de se poder aprofundar os hábitos de consumo na Lisboa oitocentista. “Sabemos que os ingleses, nessa época, consomem mais gin do que cerveja, mas dos portugueses não há registos”, diz Vanessa.

“Ainda que estas duas bebidas [gin e genebra, que são diferentes] fossem comercializadas em larga escala na Europa e mesmo no mundo desde o século XVII, na segunda metade do século XVIII e inícios da centúria seguinte assiste-se a um enorme crescimento deste comércio internacional”, escrevem os investigadores da FCSH. “O seu consumo era de tal maneira generalizado e o alcoolismo por ele provocado de tal forma problemático que chegou mesmo a ser satirizando em algumas gravuras do século XIX.”

João Sequeira e Tânia Casimiro explicitam ainda, no artigo, que as garrafas deste tipo “são tradicionalmente apontadas como sendo produzidas nas proximidades da fábrica que engarrafava a bebida nelas contida”, mas que, devido “ao elevado número de peças exigidas pela produção holandesa”, é possível que “possam ter sido produzidas na Alemanha, exportadas vazias para os Países Baixos e ali preenchidas e exportadas”.

Com base nas garrafas da Rua do Salitre já houve um primeiro trabalho académico sobre o assunto, também na FCSH, mas continua a haver muito para investigar.

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