O dia em que Rui Moreira, o autarca, estragou um potencial negócio à família

Tribunal deu como provado que a Câmara do Porto, liderada pelo independente, é a proprietária de parte substancial de um terreno que uma empresa da família do autarca dizia ser seu e para o qual reclamava capacidade construtiva.

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Terreno foi expropriado pela Câmara, para a construção da ponte, em 1949 Nelson Garrido

O presidente da Câmara do Porto garantiu nesta sexta-feira não ter “qualquer sentimento contraditório” com a decisão do Tribunal Judicial do Porto, que, ao dar como provado que uma parte substancial de um terreno na escarpa do Douro, registado em nome da imobiliária Selminho, pertence, na verdade, ao município, estragou um potencial negócio da empresa detida pelo próprio Rui Moreira, mãe e irmãos.

A confirmar-se a decisão – que será passível de recurso –, a família fica com pouco mais de 600 metros quadrados, de um total de 2260 para os quais reclamava, à própria câmara, a possibilidade de construir. Mas Moreira ganhou a possibilidade de poder dizer que, em relação a esta questão, como presidente, “zelou pelo interesse dos munícipes".

O chamado caso Selminho envolve terrenos na escarpa da Arrábida e, até 2017, era notícia por implicar um eventual conflito de interesses entre Rui Moreira, o autarca, e Rui Moreira, o sócio de uma imobiliária que, em tribunal, exigia que a câmara reconhecesse o direito da Selminho a construir naquela propriedade de 2260 metros quadrados. Um terreno com vistas para o rio e o mar que a sociedade comprara a um casal em Julho de 2001, e que avaliava como um bom negócio, tendo em conta, claro, a expectativa de ali erguer construções.

Foi numa das várias notícias sobre a polémica, em torno uma contradição que o Ministério Público considerou não implicar qualquer ilegalidade por parte do autarca, que um funcionário do município olhou para uma planta num jornal. Uma planta na qual Manuel Moreira da Silva, o técnico em causa, percebeu, em Dezembro de 2016, que o terreno da Selminho se sobrepunha, em boa parte, a uma propriedade do município.

E foi isso que, na sequência de um parecer externo, a própria autarquia decidiu, meses depois, pedir ao tribunal que reconhecesse, como sucedeu nesta sexta-feira. Esclarecida a questão da propriedade, a decisão judicial faz ruir, como um frágil baralho de cartas, todo um conjunto de actos jurídicos realizados em torno de um terreno que, considerou o juiz, não pertencia a nenhum dos envolvidos – nem ao casal que habitava numa casa nem à Selminho, que lhes comprou o imóvel –, mas a um desconhecido, numa parte pequena, e ao património da cidade do Porto, em 1660 metros quadrados.

Usucapião improcedente

A inventariação deste património está a ser feita há anos pelo município, a um ritmo considerado lento pela oposição, que questiona se não haverá outros casos de urbanização por privados em terrenos que, afinal, sejam públicos. A atenção tem estado centrada, aliás, na polémica que tem envolvido, a poucos metros, e na base daquela mesma escarpa, um grande projecto imobiliário, na marginal do Douro, que a câmara se tem recusado a travar, apesar de dúvidas, também, sobre a titularidade de parte da área de implantação de dois prédios.

Num caso como noutro há uma figura jurídica em comum: a do usucapião. No caso Selminho, um casal que habitaria numa casa sem ligação à rede de água, deu-se ao trabalho, em Maio de 2001, de ir a um cartório de Montalegre, a 150 quilómetros do Porto, registar como seu um terreno que, alegamente, teriam comprado ao pai da mulher, em 1970, sem que dessa transmissão tivesse havido qualquer registo.

Sem provas de que o imóvel, do qual, em 31 anos, nunca pagaram impostos, pertencesse, sequer, antes, ao pai – um homem contratado para trabalhar na construção da Ponte da Arrábida -, o casal Ferreira enredou-se, segundo o juiz, em algumas contradições e mostrou enorme insegurança na hora de tentar provar que, de facto, eram proprietários do que quer que fosse. Até porque, nesse registo de 2001, omitiram inclusivamente a existência, no referido terreno, da casa onde diziam viver.

“Viver durante 30 anos numa casa, na cidade do Porto, sem água canalizada e sem nunca ter promovido a ligação à rede púbica; viver durante 30 anos numa casa e nunca investir na sua valorização, não realizando quaisquer efectivas “benfeitorias”; comprar e viver durante 30 anos numa casa e, no momento de a registar, omitir a sua existência e declarar apenas um terreno; efectuar uma desnecessária e inexplicável deslocação de centenas de quilómetros, com os custos inerentes, apenas para justificar o que é seu; comprar e viver durante 30 anos numa casa e desinteressar-se, e não negociar o preço da sua venda: é esta uma actuação como proprietário da coisa?” - questiona o juiz.

 A resposta vem nas páginas seguintes: "resultou provado que os primeiros réus [o casal] nada adquiriram por usucapião e que, no essencial, os factos objecto da escritura de justificação não correspondem à verdade", observa o juiz que, a dado momento, se atém a analisar a ida a Montalegre e a posterior publicitação da escritura de usucapião n'O Primeiro de Janeiro, um jornal cuja tiragem não era auditada. “A escritura é pública, é certo, mas, dir-se-ia, mais em Montalegre do que no Porto, lugar da situação do prédio − pública posse; oculta escritura”, escreve, convocando o aforismo qui male agit odiat lucem (quem mal age odeia a luz)”.

Selminho "confiou" nos vendedores

E à luz da prova feita quase 18 anos depois, a outra ré no processo, a sociedade da família Moreira, que comprara o terreno dois meses depois daquela insólita viagem do casal Ferreira a Trás-os-Montes, sai ilibada das irregularidades que levaram o tribunal a impugnar a escritura de usucapião e a mandar cancelar a respectiva inscrição no registo predial. “Não obstante o prévio processo tendente ao registo a favor dos primeiros réus ter tido contornos peculiares, como vimos, dos factos indiciários apurados não se pode extrair que a segunda ré não confiou na narrativa apresentada pelos primeiros réus, reflectida na escritura de justificação notarial e no registo predial”.

Em todo o caso, a empresa da família Moreira não conseguiu, nesta instância, que o tribunal aceitasse que passou a ser detentora do terreno, também por usucapião, por terem passado mais de 15 anos desde aquela escritura de 2001, sem que os proprietários reclamassem os terrenos. Ou que reconhecesse qualquer má-fé por parte da câmara, que, a partir de 2010, e durante anos, nos diversos contactos com a empresa a propósito destes terrenos – reuniões e reclamações em tribunal para ver reconhecido o direito a construir naquele lugar -, nunca assumiu a propriedade da parcela em causa.

A empresa ainda pediu que lhe fosse garantida “a protecção concedida por uma norma do Código de Registo Predial segundo a qual “a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé”. Mas para o juiz, "a Selminho nada adquiriu (também) pelo registo, pelo que este nenhuma protecção tem para lhe oferecer”.

O PÚBLICO não conseguiu reacções dos representantes de ambos os réus, mas percebe-se que esta interpretação, que o próprio magistrado assume como controversa, pode, entre outras questões suscitadas pela decisão, servir de argumento para um eventual recurso por parte da Selminho cujo advogado, José Ricardo Gonçalves, em declarações à Lusa, disse estar a ser ponderado. A reacção desta sociedade - que segundo o juiz pode, no máximo, pedir ao município uma indemnização por despesas efectuadas com o terreno - é muita aguardada pela oposição na Câmara do Porto. Ou não fosse o autarca Rui Moreira, a título particular, um dos lesados por este desaire.

Este afirmava nesta sexta-feira que esperava que a decisão acabasse com "a maledicência" de que se considera alvo desde que a polémica estalou. Mas dificilmente poderá esperar uma trégua dos opositores, se a litigância se arrastar no tempo, por via de um eventual recurso, ou se, como noutros casos envolvendo alegados direitos adquiridos, a empresa afectada - que é sua - vier a terreiro pedir uma qualquer indemnização não pelos trabalhos realizados, mas por ser impossibilitada definitivamente, de construir ali - como vinha reclamando - por motivos que lhe são, como alegou neste processo, alheios.

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