No Porto bate um coração liberal

Os topónimos estão tão entranhados na cidade que poucos se interrogarão sobre a origem. Mas há um Porto invisível, que aí se faz ver, a guardar a memória da guerra civil que no século XIX dividiu o país entre liberais e absolutistas – e valeu o cognome de invicta à cidade. É essa cidade que a rota Porto Liberal resgata, lembrando quanto custou a liberdade.

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Quartel Militar do Porto
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Museu Militar
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Museu Nacional Soares dos Reis
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Vista para Vila Nova de Gaia
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Museu da Santa Casa da Misericórdia

Há uns poucos visitantes à porta da Igreja da Lapa. Tiram fotografias ao cenário que em poucos minutos passa de sol descarado ao nevoeiro cinematográfico que dilui os contornos graníticos da fachada. Duas brasileiras cumprem o ritual já depois de visitado o interior. Saem sem ter percebido que o coração do primeiro imperador do Brasil se encontra aqui depositado. Vão voltar, então, asseguram, com uma terceira amiga, historiadora, que nesta tarde seguiu outro rumo. Estão, sem o saber, bem dentro do Porto Liberal que se transformou numa “rota directa ao coração” – o coração de D. Pedro IV (I do Brasil), o grande símbolo do liberalismo que, desde o Porto, triunfou no país.

Dois irmãos desavindos, um país em guerra – poderia ser a sinopse de um livro ou de um filme. O argumento não é, de todo, original. Mas encaixa no que foi o episódio mais marcante do Portugal do século XIX, não só pelos acontecimentos em si, mas pelo eco que estes lançaram no futuro. Contudo, fica curto: a disputa entre D. Pedro IV e D. Miguel não foi uma “mera” luta pelo trono português, foi por um modelo de sociedade (e governação).

O confronto definitivo entre absolutismo e liberalismo teve o seu episódio mais determinante no Cerco do Porto, o culminar de um processo que se havia iniciado mais de uma década antes, também no Porto, com a constituição do sinédrio que haveria de impulsionar a revolução liberal em 1820 – e a monarquia constitucional. Pelo meio, o Brasil torna-se independente com D. Pedro (liberal) como seu imperador, D. Miguel (absolutista) é exilado, regressa, usurpa o trono e reinstitui o absolutismo. E, então, em 1832, D. Pedro, qual D. Sebastião, volta para resgatar a carta constitucional, que ele próprio havia concedido, para Portugal. Durante 13 meses, entre 1832 e 1833, a cidade do Porto foi o palco central desses tempos de guerra entre os dois irmãos dos quais saiu com o título de invicta, a juntar-se a “a antiga, mui nobre, sempre leal”. E a rota Porto Liberal, na qual embarcamos, recupera essa memória, com percursos pela cidade que viveu esse ano de tumulto diário – e com a que daí emergiu.

A conexão brasileira

Regressamos à Igreja da Lapa, ao lado do Quartel Militar do Porto, que começou como Capela de Nossa Senhora da Lapa das Confissões, numa altura (1755) em que a Lapa ficava fora da cidade e era zona de má fama e criminalidade. Era um espaço “seguro” para ladrões (de pequena monta) arrependidos, que eram instados a devolver o produto do roubo: “Havia umas cómodas e as pessoas podiam vir deixar as coisas. Funcionava um pouco como as rodas da Misericórdia, onde se deixavam os bebés”, explica o historiador e membro da Irmandade da Lapa Francisco Ribeiro da Silva.

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Igreja da Lapa

O seu fundador foi um padre brasileiro, que acabaria por regressar ao seu país sem saber que o primeiro imperador do Brasil havia de descansar o coração aqui. D. Pedro IV morreu em 1834, o seu coração chegou em 1835, doado à cidade do Porto. Ia ser depositado na Sé, mas D. Maria II (filha) escolheu a Igreja da Lapa, porque “ele vinha à missa aqui”, conta Ribeiro da Silva. E aqui continua o seu coração, encerrado no monumento funerário na capela-mor – a chave guarda-se no gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto e o escrínio é aberto muito raramente.

Estamos, portanto, no coração simbólico e literal da rota (e do Porto). “É um local emblemático”, afirma Ribeiro da Silva, já no exterior da Igreja da Lapa. “Por um lado, temos o mausoléu com o icónico coração de D. Pedro, por outro esta zona, incluindo a Praça da República, antes Campo de Santo Ovídio, era o coração do teatro de operações”. É aqui que ainda hoje se ergue o Quartel Militar do Porto, traseiras a meia dúzia de passos da igreja. “A igreja foi construída com ajuda dos militares”, conta, “houve sempre proximidade, não só física”.

No quartel militar subimos ao primeiro andar, vista para a Praça da República, “cenário importante das lutas liberais no Porto, as de 1820 e as do cerco”. Agora, o quartel está impávido e sereno, quase alheio à cidade (e vice-versa). Tanto que o próprio Ribeiro da Silva só há poucos meses soube da existência do que nos traz aqui hoje: os baixos relevos originais da base da estátua de D. Pedro IV na Praça da Liberdade, esculpidos em mármore de Carrara e transferidos para aqui na década de 1950: um retrata o desembarque em Pamplido (a praia onde desembarcou D. Pedro no que ficou colectivamente conhecido como Desembarque do Mindelo); o outro a chegada do coração à cidade.

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Quartel Militar do Porto

Da guerra nasceu um museu

E voltamos ao caminho. A próxima paragem foi a casa dos Morais e Castro (Palácio dos Carrancas) e é há várias décadas a casa do Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR). A exposição temporária é uma feliz coincidência: deparamo-nos com um busto de D. Pedro IV e retratos deste e da sua segunda mulher, D. Amélia de Beauharnais. Pertencem ao acervo, mas estão nas reservas: o retrato de D. Amélia esteve muitos anos exposto, pelas peças de ourivesaria que adornam a duquesa; o de D. Pedro está circunstancialmente, o busto nunca está.

“Foi feito para a visita que ele faz ao Porto, em 1834”, explica Maria Guimarães, do MNSR. Veio acompanhado pela mulher e pela filha, a rainha D. Maria II, e ficaram alojados no palácio. Era a segunda vez que D. Pedro aqui ficava: no início do Cerco do Porto este foi a sua casa, até ser aconselhado, por questões de segurança (o edifício estava exposto à artilharia miguelista estacionada em Vila Nova de Gaia), a transferir-se (para a Rua de Cedofeita, nº 395). Era a última vez que visitava o Porto – e já o imaginaria: a doença matá-lo-ia menos de dois meses depois, mas não quis deixar de agradecer à cidade.

Não imaginaria, com certeza, é que o palácio viria, mais de um século depois, a albergar o museu que ele próprio fundara, durante o cerco – nessa altura, mandatara João Baptista Ribeiro para começar a reunir um espólio, entre “pinturas e estampas” de conventos “abandonados” (e que viriam a ser extinguidos pouco tempo depois) e casas “sequestradas” (dos miguelistas). Este acabou por ser o embrião do MSNR, que no início chegou a ser conhecido como Museu de Pinturas e Estampas, Ateneu D. Pedro e Museu Portuense – independentemente do nome, foi o primeiro museu público de arte no país.

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Museu Nacional Soares dos Reis

Dos aposentos do rei no palácio não restam pistas, os da rainha foram os da antiga sala de música – recuperada no seu esplendor original, num dos cantos da fachada principal do palácio que viria a ser comprado por D. Luís, neto de D. Pedro IV, para Paço Real no Porto. Permaneceu na posse da família real até à morte, no exílio, do último rei de Portugal, D. Manuel II, que o deixa em testamento à Misericórdia. O Estado português compra-o em meados do século XX para a instalação do museu que já tinha o nome de Soares dos Reis e que nas suas reservas guarda outras memórias de D. Pedro IV: o óculo e o chapéu armado que este usou durante o Cerco do Porto – foram doados pela viúva a pedido de João Baptista Ribeiro e fizeram parte do núcleo original do museu – e a sua farda do batalhão de Caçadores nº 5.

Os mártires da liberdade

O Museu e Igreja da Misericórdia do Porto (MIPO) é o nosso próximo destino. Até lá passamos o Hospital de Santo António para ficarmos a saber que D. Pedro foi provedor da misericórdia portuense por um curto período, em 1833. “Tomou posse no hospital, não na sede, na Rua das Flores, que teve de ser provisoriamente transferida por razões de segurança”, conta José António Silva, do Serviço de Públicos do MIPO. Ao mesmo tempo ouvimos a história dos Mártires da Liberdade – um nome perpetuado na toponímia de tantas cidades –, que estiveram enterrados num terreno que é hoje o serviço de urgência do hospital, o “adro dos enforcados”. Quando D. Miguel regressa a Portugal e novamente estabelece o absolutismo, nasce uma revolta que não foi bem-sucedida: 12 dos envolvidos foram enforcados na Praça Nova das Hortas (Praça da Liberdade), cabeças decepadas, espetadas em varas e exibidas em vários locais da cidade – foi a misericórdia que chamou a si, já depois do triunfo do liberalismo, a tarefa de os sepultar, primeiro na sua igreja, mais tarde no Cemitério do Prado Repouso, num mausoléu.

Na Rua das Taipas (ao lado da Cadeia da Relação, onde tantos liberais estiveram presos) passamos diante da casa (nº 171) de um dos “mártires”, no MIPO vemos o átrio onde estiveram enterrados. Na exposição do museu, a bandeira que terá acompanhado o cortejo fúnebre exibe-se junto a uma fotografia, antiga, do cenotáfio: um homem aponta a um rapaz o monumento. “É a questão da memória”, avalia José Antónia Silva. A memória de D. Pedro também está exposta no museu, com um retrato deste já como imperador do Brasil e príncipe real português – um outro, de corpo inteiro, encomendado no ano após a sua morte, faz parte da colecção de retratos régios da instituição.

Teatro da glória

Já estamos com Alexandra Anjos, do Museu Militar do Porto, quando chegamos à Praça da Liberdade: no centro, a estátua equestre de D. Pedro IV (uniforme dos Caçadores 5, carta constitucional na mão direita, águia à frente, dragão atrás) sobre o pedestal com os relevos agora em bronze (réplicas dos originais) e crianças a brincar em volta – a Avenida dos Aliados estende-se por trás, estamos na sala de visitas do Porto. Em 1829, era a Praça Nova das Hortas: o campo das hortas do bispo a ser engolido pelo alargamento da cidade e a passar a ser espaço público. O convento da Congregação de S. Filipe Nery ficava numa das margens: daí, conta-se, os frades assistiram às execuções dos 12 mártires comendo pão-de-ló e bebendo vinho. A memória do horror permaneceu nos habitantes da cidade. “Quando D. Pedro chega, não impedem a sua entrada, mas não o aclamam, lembravam o sangue aí derramado em seu nome”, conta Alexandra Anjos. Foi durante o cerco que a população começou a gostar dele, “viram que era um homem simples, mãos na massa, andava sempre pela cidade”.

No dia-a-dia, D. Pedro conquistou a cidade do Porto (ele que havia dito ao chegar: “Não me obriguem a libertá-los”), ajudou a torná-la para sempre invicta e fez-se o “rei-soldado” e duas vezes “libertador”. Percorria as baterias – e eram muitas, tantas que poderão tornar-se numa espécie de sub-rota do Porto Liberal – e ter-se-á detido muitas vezes na Rua General Sousa Dias, um miradouro natural sobre a Serra do Pilar (um reduto liberal em Gaia, onde os “polacos da serra” protegiam o Porto dos miguelistas) entre as baterias das Fontainhas e do Postigo do Sol. As ruas que cavalgou agora têm nomes herdeiros da sua gesta – Rua da Firmeza, da Alegria, da Bataria, Duque de Loulé, Duque da Terceira, Barão de São Cosme, “são tantos...”, reflecte Alexandra Anjo.

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São cerca de 90 os topónimos portuenses ligados ao liberalismo, e a Rua do Heroísmo é um deles. É também o nosso ponto de chegada, no Museu Militar do Porto, por estes dias a receber um projecto que recorda outros tempos – aqueles em que o edifício foi sede da PIDE. Aqui, mesmo ao lado do Cemitério de Prado Repouso, há duas salas dedicadas a eventos político-militares no Porto. É na primeira que se entra no século XIX e o liberalismo surge com os elementos do sinédrio. Vemos exemplares originais da primeira constituição portuguesa e da carta constitucional, conhecemos o lado de compositor de D. Pedro – autor do Hino da Carta, o hino nacional até à implantação da república – e lemos a suas cartas de despedida aos militares (no leito de morte chama um soldado raso do Caçadores 5 para se despedir através dele dos seus companheiros de armas) e aos “amigos portuenses”. O século segue em turbulência com a Patuleia, o cabralismo, a regeneração e na segunda sala arranca-se do 31 de Janeiro – mas já são outras histórias. D. Pedro já havia deixado o seu coração – “à heróica cidade do Porto, teatro da minha verdadeira glória”.

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