Os muitos cozidos (com enchidos e fumeiro) de Nuno Diniz

Durante 14 anos, o chef e professor percorreu o país, descobrindo os melhores produtos de cada região para fazer um cozido. Neste livro partilha tudo o que aprendeu nessa viagem "entre ventos e fumos".

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Marta Teixeira

Parece seguro dizer que nunca anteriormente alguém tinha feito um trabalho tão completo, apoiado por um estudo exaustivo, do que são os cozidos de Norte a Sul de Portugal, assim como os enchidos a eles ligados. Nuno Diniz, chef, professor na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, cronista e pesquisador, há muito que é conhecido como o homem que organiza os cozidos mais completos de que há memória. Agora, passa todo esse seu conhecimento para o livro Entre Ventos e Fumos – Fumeiros e Enchidos de Portugal, editado pela Bertrand, que se torna a grande obra de referência sobre este tema.

“Andei pelo Norte, atravessando carvalhais e castanhedos, calcorreando veredas e caminhos sem nome, do nordeste para o noroeste. Cruzei montes e vales, lameiros e florestas, para acabar junto ao mar, numa viagem de redescoberta, inspiração e reconexão.” É assim que começa esta aventura para a qual Nuno Diniz nos convida.

Se soubermos procurar, diz, continua a haver uma extraordinária riqueza gastronómica – neste caso ligada sobretudo a todos os produtos nos quais o homem é capaz de transformar o porco e à ajuda que ventos e fumos lhe dão. “Consegue-se ainda encontrar quase tudo, sem grandes alterações, desde que estejamos dispostos a sair das rotas rápidas, a esquecer as redes móveis, e a nos embrenharmos nos intestinos das pequenas aldeias, esquecidas mas não mortas, envelhecidas mas ainda esperançosas e sorridentes.”

O que é então o cozido em Portugal? A definição de Nuno Diniz é muito simples: “selecção pobre de produtos vegetais e/ou animais, cozinhados em água com alguma forma de tempero”. Rejeita a ideia de que o Cozido à Portuguesa (nome que considera totalmente redutor relativamente à variedade que existe) seja inspirado em pratos semelhantes espanhóis, franceses ou italianos. É, antes, “inspirado no dia-a-dia, no que existe, no que se conserva, no que se aproveita antes que se estrague, na simplicidade de quem tanto sabe e tantas vezes no que mais ninguém quer.”

No livro, descreve detalhadamente diferentes cozidos, começando pelo barrosão e transmontano que, na sua versão, demora três dias a fazer (para além da lista de ingredientes, explica o que é necessário fazer em cada um dos dias, de manhã e à noite, num trabalho de jornada inteira). Descreve, em seguida, o que são os comeres da matança no nordeste transmontano e todos os produtos enchidos e de fumeiro daí resultantes, como são feitos, que ingredientes levam e onde são comercializados.

Aí começa-se a entender o que o autor quer dizer com variedade, porque, embora muitas vezes semelhantes no aspecto, os enchidos têm muitas particularidades – há os que levam mel e amêndoas como a farinheira de mel que se pode comprar na Feira do Fumeiro de Montalegre, os que levam abóbora porqueira, como o chouriço de abóbora também de Montalegre, os que levam farinha de centeio e os que levam farinha de milho (ou uma mistura das duas), os que ficam no fumo quatro dias, os que aí permanecem por 30 dias. E ainda não saímos de Trás-os-Montes nem entrámos no detalhe de quais as partes do animal utilizadas em cada um.

Passamos por butelos, chavianos de Vimioso, buchos, chouriços com nomes sugestivos como o “em tripa cagueira” e seguimos para Entre o Douro e Tejo para conhecer “o meu cozido entre rios” e os comeres da matança nas Beiras. Aqui, “a vitela e a vaca têm uma presença mais pronunciada, aparece a galinha, o toucinho gordo fresco e o feijão”. Há enchidos cada vez mais raros como o salpicão de língua (é preciso ir ao restaurante da Pensão Borges, em Baião) ou as buchanas, que são produzidas e comercializadas de forma “esporádica e quase só por particulares”.

Segue-se o Ribatejo e Estremadura, que tem entre os seus comeres da matança o arroz de golada, e depois o Sul e as Ilhas. No Alentejo encontramos a surra-burra, enquanto no Algarve temos o xerém de sangue e nos Açores o beleguim de frigideira. E em cada região mais um número surpreendente de diferentes enchidos.

No final, uma série de receitas da autoria de Nuno Diniz, unidas pela “presença das carnes fumadas, ou de elementos indubitavelmente ligados ao espírito deste livro, como a Vitela Barrosã ou o Porco/Leitão”. Reunidas ao longo de anos, algumas foram feitas para os alunos, outras para apresentar em feiras ou em eventos, mas todas, garante o autor, podem ser reproduzidas em casa, havendo, claro, diferentes graus de dificuldade.

Quem não se aventurar a cozinhar pratos como cabeça de bísaro agridoce, rabos picantes (uma receita que começa por “queimar e retirar o pelo aos rabos de porco”) ou lançar-se a fazer pastrami (são cinco dias de preparação) ou a provar gelado de barriga de porco e tarte de maçã, pode sempre pegar no livro e percorrer o país, de Norte a Sul e Ilhas, e ir provando tanta coisa que, em muitos casos, nem sabíamos que existia. Nuno Diniz demorou 14 anos a fazê-lo, mas chegou a uma “convicção absoluta”: a de que “temos mais e certamente muito melhor fumeiro do que qualquer outro povo”.

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