Sobraram sete crimes na derrocada dos vistos gold e Macedo foi ilibado

Apenas quatro dos 21 arguidos do megaprocesso foram condenados, entre eles António Figueiredo. “O tribunal deu resposta às canalhices que me fizeram”, declarou ex-ministro. “Este tribunal não faz fretes a ninguém”, assegurou juiz.

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Miguel Manso

No despacho em que mandou os 21 arguidos do caso dos vistos gold para julgamento por uma panóplia de crimes de colarinho branco, o juiz de instrução criminal Carlos Alexandre descreveu o caso como sendo um “lamaçal”. Depois da queda de um ministro – o arguido Miguel Macedo, que detinha a pasta da Administração Interna – e de uma investigação que durou cerca de três anos, um dos megaprocessos mais emblemáticos da justiça portuguesa dos últimos anos, o Labirinto, fechou ontem as contas com um saldo a saber a pouco: quatro condenações, e nenhuma delas a pena efectiva de cadeia. De 47 crimes indiciados sobraram sete.

É certo que o Ministério Público deverá recorrer da maioria das absolvições, mas o próprio procurador que acompanhou o julgamento, José Niza, já tinha revisto em baixa as ambições dos seus colegas do Departamento Central de Investigação e Acção Penal no fim do julgamento, quando admitiu que a maioria dos arguidos fosse condenada apenas a penas suspensas, pedido que incluiu Miguel Macedo.

A investigação começou com uma denúncia anónima feita por trabalhadores do Instituto dos Registos e Notariado, que estranhavam que o principal responsável deste organismo, António Figueiredo, aparecesse tantas vezes nos serviços acompanhado por cidadãos chineses e deles se ausentasse durante o horário de trabalho também na sua companhia, para os ajudar em negócios imobiliários, parte dos quais necessários para a aquisição de vistos dourados. A queixa relatava ainda como as secretárias daquele que viria a ser o principal arguido do caso eram usadas para tratar destes negócios privados, e ainda das deslocações periódicas a Angola do mesmo responsável e de alguns funcionários da sua confiança, para darem formação.

E tudo isto veio a provar-se ser verdade. Quando o presidente do Instituto dos Registos e Notariado foi colocado sob escuta, descobriram-se-lhe novas actividades ilícitas: com o conluio da secretária-geral do Ministério da Justiça, Maria Antónia Anes, que pertencia à Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (Cresap), António Figueiredo manipulou alguns concursos destinados a escolher altos dirigentes do Estado. Num dos casos em favor de si próprio, noutro para beneficiar um funcionário público que se tornou recentemente secretário de Estado da Modernização Administrativa, Luís Goes Pinheiro.

Conversas por telefone e email

À medida que o tempo passava, mais conversas por telefone e por correio electrónico iam apontando novos suspeitos. Foi assim que a Polícia Judiciária chegou ao ministro Miguel Macedo, amigo de Figueiredo. Numa altura em que já temiam estar a ser investigados este e outros suspeitos referiam-se a ele como “cavalo branco” e mencionavam as influências que este podia mover para os ajudar nos negócios. Entre os vários negócios em causa estava o tratamento em hospitais privados portugueses de feridos de guerra líbios, a qual estava associado o ex-patrão de José Sócrates, Lalanda de Castro, mas também o amigo e ex-sócio de Miguel Macedo Jaime Gomes. Este último foi quem fez a ponte para um outro negócio: a contratação, pelo Ministério da Administração Interna, de meios aéreos de combate a incêndios.

António Figueiredo foi escutado várias vezes a gabar-se disto e daquilo ao telefone. Que andava a “arrebanhar por todo o lado”, que ia dar “parte dos cinco mil” ao director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Jarmela Palos – também ilibado ontem – para o manter satisfeito. Dizia a acusação que Jarmela Palos, um dos cinco arguidos do processo que chegaram a estar em prisão preventiva, aligeirava os requisitos necessários para a emissão dos vistos dourados aos amigos de António Figueiredo, fazendo-lhes chegar o documento em prazos recorde. Nada disto foi considerado provado.

Noutros casos era Figueiredo quem acelerava a emissão de documentos, como no dia em que o ex-ministro Miguel Relvas lhe pediu uma certidão do registo criminal para a sua mulher arranjar um visto para Angola, onde ia a um casamento. Foi-lhe entregue em menos de duas horas. Pelas vias normais, na altura teria demorado muito mais tempo.

Nesta sexta-feira, à saída do tribunal, o advogado de António Figueiredo fez um resumo acutilante do acórdão que, apesar de condenar o seu cliente a uma pena suspensa de quatro anos e sete meses de prisão por corrupção activa, corrupção passiva e peculato o ilibou dos restantes oito crimes de que estava acusado. “Este processo resumiu-se à Cresap”, resumiu Rogério Alves.

De facto, e no que às suspeitas relacionadas com a emissão de favor de vistos dourados diz respeito, apenas um casal de nacionalidade chinesa das relações de António Figueiredo foi condenado, por tráfico de influências. Cada um terá de pagar 1500 euros, mas só isso. O próprio ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado foi absolvido neste capítulo, tal como naqueles que diziam respeito à promoção de acções de formação e à publicação de códigos dos registos e notariado em Angola. A condenação deste alto dirigente da administração pública por peculato relaciona-se ainda com o uso e abuso que fez dos seus serviços de secretariado.

Pediu audiência a Núncio

Quanto a Miguel Macedo, o Ministério Público acusava-o de quatro crimes, um de tráfico de influência e três de prevaricação. Teria alegadamente conseguido que o secretário de Estado das Finanças Paulo Núncio – que nunca foi arguido –​ perdoasse 1,8 milhões de euros de IVA a Jaime Gomes no negócio de tratamento de feridos de guerra líbios em hospitais portugueses. "É verdade que interveio na marcação da audiência" que Paulo Núncio concedeu à firma em causa para que esta pudesse apresentar o seu ponto de vista sobre o assunto, admitiu o presidente do colectivo de juízes, Francisco Henriques, que absolveu o antigo governante. "Mas a sua intervenção ficou por aí, ele não tinha qualquer influência sobre a Autoridade Tributária."

Dizia ainda a acusação que Miguel Macedo também teria pedido ao então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, para facilitar a chegada dos feridos a solo nacional. "Não parece ter sido irregular a vinda destes cidadãos para Portugal", observaram os juízes.

No que respeita à contratação de meios aéreos de combate a incêndios, mesmo admitindo que os procedimentos do governante não foram os mais correctos os magistrados resolveram ilibá-lo também. Recorde-se que Miguel Macedo enviou antecipadamente a uma empresa das relações de Jaime Gomes - a Faasa, investigada em Espanha num mega-escândalo de corrupção - o caderno de encargos de um concurso para manutenção e operação de aeronaves de Kamov que ainda não tinha lançado. Também se reuniu com representantes da mesma firma em casa deste amigo. Para tudo isto deu sempre a mesma explicação: tendo um concurso anterior ficado deserto e estando a época dos fogos a aproximar-se, não podia dar-se ao luxo de voltar a não ter quem prestasse o serviço. Daí que tenha tentado aliciá-los. Uma explicação que o tribunal aceitou como boa. "Enviou o caderno de encargos e não o devia ter feito. Mas era preciso ter sido provada a sua intenção de beneficiar ou prejudicar alguém para preencher o crime de prevaricação", assinalou Francisco Henriques.

À saída do tribunal, Miguel Macedo proferiu uma única frase: “O tribunal deu resposta às canalhices que me fizeram". Já os juízes asseguram que ninguém os pressionou para ilibarem grande parte dos arguidos: “Este tribunal não faz fretes a ninguém.”

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