Louis Armstrong como nunca o vimos, como não o imaginávamos

A casa-museu da lenda do jazz, instalada naquela que foi a sua residência desde 1943, abriu definitivamente ao mundo as portas de um arquivo fascinante. Podemos agora vê-lo, ouvi-lo, descobri-lo sob novas luzes. Está tudo online.

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Louis Armstrong nos anos 1960 nas escadas da sua casa em Queens Cortesia da Louis Armstrong House and Archives no Queens College /CUNY REUTERS
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Um dos quadros da sua colecção Cortesia da Louis Armstrong House and Archives no Queens College
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As suas gravações e colagens Cortesia da Louis Armstrong House and Archives no Queens College

Durante muito tempo ele propagou uma verdade que, simbolicamente, era perfeita. Dizia Louis Armstrong ter nascido a 4 de Julho de 1900, ou seja, no dia da independência dos Estados Unidos, no dealbar do século XX. Fazia todo o sentido. Afinal, Louis Armstrong foi um dos grandes responsáveis, senão o maior, por oferecer ao seu país o jazz, a música que tão bem representou o movimento da era moderna, com o progresso artístico lado a lado com o entretenimento, com a emancipação das comunidades segregadas. Foi já nos anos 1980, mais de uma década depois da sua morte, em 1971, que se revelou a sua verdadeira data de nascimento – 4 de Agosto de 1901. Mito desfeito, ficou a mentira como um pormenor anedótico sem importância. A vida de Louis Armstrong tinha ainda muito que contar.

Cantor, trompetista, compositor, ocasionalmente actor, figura lendária da música popular americana e estrela de dimensão planetária, o homem nascido em Nova Orleães contou-a bem cedo – estava ainda na terceira década de vida e já assinava uma autobiografia. A sua dimensão levou, de resto, a que muito do seu percurso fosse conhecido, estudado e investigado. Em 2003, o saber acumulado passou a ter lugar, com a inauguração oficial da Casa-Museu Louis Armstrong a 15 de Outubro desse ano. Instalada na casa no bairro de Queens, Nova Iorque, onde Louis Armstrong e a sua quarta mulher, Lucille, viveram desde 1943 até à morte do músico, preserva nos seus dois andares e no interior mantido praticamente inalterado desde que os Armstrongs faziam dela o seu lar, vastos documentos que nos permitem conhecer o músico mais intimamente.

Até ao final de 2018, para investigar as suas gravações caseiras ou analisar as suas pautas, observar as colagens com que organizava recortes de imprensa ou com que decorava as caixas das ditas “gravações caseiras”, para percorrer o material fotográfico, pessoal e institucional, que guardava, ler as longas cartas e reflexões que escrevia à mão ou à máquina de escrever, era necessário fazer uma marcação e viajar até Nova Iorque. Agora, fãs e investigadores podem conhecer tudo a partir de suas casas. Terminado um longo processo de digitalização, os mais de cinco mil registos sonoros, 15 mil fotografias, dezenas de filmes, vastíssima correspondência e demais material estão acessíveis, mediante inscrição, no site da Casa-Museu Louis Armstrong (www.louisarmstronghouse.org).

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É habitual ter-se em relação a Louis Armstrong a imagem do cantor de sorriso rasgado, temperamento dócil e terna rouquidão na voz – ou seja, o de Hello Dolly ou de What a wonderful world, os seus dois grandes êxitos tardios, editados em 1964 e 1968, respectivamente. É comum a imagem estereotipada de alguém unidimensional, cavalheiro imerso no seu tempo sem sobressaltos e sem turbulência — principalmente quando se pensa na agitação e turbulência da geração que se lhe seguiu, a do bebop, a de Charlie Parker ou de Miles Davis, uma geração que, apesar de toda a admiração e reverência que dedicava ao velho Satchmo, gostaria que ele erguesse mais a voz e utilizasse mais a sua autoridade, enquanto primeira estrela afro-americana adoptada por toda a nação, para denunciar a iniquidade da segregação e do racismo.

Sabemos que tal olhar não faz justiça a Louis Armstrong, músico revolucionário, homem que criticou publicamente o presidente Eisenhower pelo que Louis via como tibieza no combate à discriminação racial. Olha-se verdadeiramente para Louis Armstrong e temos perante nós o génio que libertou o jazz em novas e estimulantes direcções, abrindo caminho para a manifestação da expressão individual dos músicos numa arte que era, até ele, vista acima de tudo como labor colectivo – fê-lo ao conduzir o seu trompete por caminhos inesperados nos solos, fê-lo pela forma magistral como incorporou definitivamente o “scat” no léxico musical. Ora, essa marca individual, única e inimitável revela-se uma viagem fascinante, enquanto mergulhamos nos imensos arquivos agora disponíveis.

Temos o humor pós-moderno, cartoonesco, por vezes surrealista, das colagens que fazia. Temos os postais que enviava e recebia do mundo inteiro. Temos a forma como reunia material de imprensa, as boas e as más críticas, e os comentários que lhes fazia, como forma de documentar o relevo do seu percurso artístico. Temos os longos textos com reflexões sobre os mais diversos temas – a música, claro, a marijuana que consumiu toda a vida, e cujas qualidades muito elogiava, e até as virtudes da luxuosa casa de banho espelhada que instalou na sua casa de Queens. Temos também as muitas gravações em fita que foi fazendo em casa ou nas terras onde a música o levava – o gravador era peça indispensável nas digressões. Nelas, temo-lo agindo como DJ, apresentando as canções que grava da sua discografia caseira, ouvimo-lo improvisar sobre temas seus ou de outros – e eis-nos na intimidade do génio. Percebemos que, apesar das críticas públicas, seguia atentamente os jovens revolucionários da geração seguinte, e podemos até transformar-nos em mosca na parede e ouvir a longa conversa e as muitas piadas trocadas entre Satchmo e restantes músicos nos bastidores do Chicago Theater, no final de um concerto em 1954.

Depois de algumas horas a saltar de tempo em tempo, ou seja, de uma fotografia à chegada à Suécia, na juventude, à do seu trompete encostado ao trompete de um muito jovem aspirante a músico, possivelmente seu vizinho em Queens; de uma fita onde excertos de ópera são misturados com reportagens da sua apoteótica recepção no Líbano à sessão em que, já veterano, aprecia as suas glórias de juventude – delicia-se com discos dos seus Hot Five e Hot Sevens do final dos anos 1920; depois de tudo isso que é possível ver e ouvir nos arquivos, dizíamos, descobrimos alguém mais próximo e mais complexo. Uma intimidade que, por uma vez, não destrói um mito. Engrandece-o. Viagem fascinante, de facto.

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