Kristin Hersh despede-se da sua Rat Girl

Possible Dust Clouds, décimo álbum a solo de Kristin Hersh, marca o fim de uma relação com canções que nunca teve de inventar. E é tão misterioso e inebriante quanto nos habituámos a esperar da cantora dos Throwing Muses.

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Peter Mellekas

Estreada em 1994, a sitcom Friends havia de tornar-se, logo na primeira de dez temporadas, um dos mais populares programas da televisão norte-americana. Nesse mesmo ano, a líder da banda Throwing Muses, Kristin Hersh, inaugurava a sua carreira a solo com o álbum Hips & Makers e alcançaria também o pico do seu reconhecimento mediático graças ao single Your ghost, dueto partilhado com Michael Stipe (dos R.E.M.) e caído nas boas graças da então todo-poderosa MTV. Os dois factos em nada estariam ligados, a não ser por uma pequena curiosidade que resvalou para o lado da História não-oficial de ambos. Por alguma razão pouco discernível, alguém na produção de Friends se lembrou de Kristin Hersh para participar num dos episódios, interpretando uma qualquer canção – previsivelmente humorística.

Terá sido a súbita atenção conquistada por Your ghost a motivar a aproximação improvável entre os dois mundos. “Ligaram-me a convidar para tocar no programa e eu respondi ‘Claro que não, isso é ridículo!’”, lembra Hersh ao Ípsilon. E era ridículo, antes de mais, porque nada parecia ligar um programa de apelo massificado e assente num encadeamento de gags relacionais de seis jovens a aprenderem as regras do jogo da vida adulta em Nova Iorque à criadora de uma linguagem musical assente numa aversão à linearidade que sempre fez do reportório dos Throwing Muses um desafio constante para os ouvintes – cada canção, sobretudo nos primeiros anos da banda, era agitada por constantes guinadas na sua estrutura e uma fervente fuga à normalidade. Dificilmente haveria um match entre os dois.

Só que Your ghost, como Kristin Hersh agora recorda, à semelhança de grande parte do seu reportório, é “enganadoramente simples”. E parece simples porque corresponde, na verdade, a uma progressão de quatro acordes que se vai repetindo; só que a letra, ao invés de acompanhar essa sequência, como seria normal, lança cada estrofe sobre um acorde diferente, tornando a canção bastante mais sinuosa, voz e guitarra caminhando lado a lado mas por estradas paralelas. “É estúpido e doido”, classifica, “mas funciona e significa que podemos ouvir sem ficarmos demasiado entediados, porque há mais coisas a acontecer do que parece. Há complexidade na simplicidade – se é que isto faz algum sentido.” E por isso ri-se quando pensa nos vídeos a que já assistiu no YouTube em que os intérpretes espontâneos acrescentam um falso quinto acorde para que a voz não persista na fuga à harmonia de base. “Não, não, não, não! Assim é muito chato. Mas as pessoas, na verdade, gostam que fique chato, que soe àquilo que já ouviram antes.”

Para alguém tão pouco alinhado com as regras da música de cariz comercial e que sempre fez saber que as suas canções lhe apareciam na cabeça como vozes que tinha depois de tentar seguir até lhes encontrar a forma na guitarra, o convite de Friends trazia já a recusa apensa. Na Europa, essa decisão não levantaria quaisquer problemas porque Hersh fora – com os Muses – a primeira artista norte-americana assinada pela 4AD (só depois, e pela sua mão, chegariam os Pixies); nos Estados Unidos, o contrato com a Sire colocava-a no catálogo da multinacional Warner Bros. E então alguém lhe ligou da Warner, na altura, com o raspanete de que “não se recusa o programa número 1 da televisão americana”. “Claro que se recusa, é essa a regra”, respondeu-lhes.

No mundo de Hersh, não entrar num circuito popular sempre implicou ir à procura do seu público, gente disposta a adentrar o mistério que se cola às suas canções, sem esperar atalhos ou caminhos fáceis. Friends não fazia parte desse plano. Sobretudo quando ela sempre se convenceu de que se tratara de uma confusão inocente e o explicou à sua editora: “Kristin Hersh, Chrissie Hynde – eles devem achar que sou a Chrissie Hynde [vocalista dos Pretenders]” Como, nesse período, “pintava o cabelo de preto e tinha um hit na rádio” arrumou o assunto na gaveta das identidades trocadas, mesmo que estivesse “meio a brincar”. Tempos depois, Chrissie Hynde surgiu num episódio de Friends e o mesmo tipo da Warner voltou a ligar-lhe: “OK, ganhaste”.

Rat Girl

Há muito que Kristin Hersh descobriu uma forma de sobrevivência artística que não a colocasse na directa dependência das estruturas convencionais da indústria musical. Ou seja, longe de poder ver satisfeita a necessidade de deitar para o mundo o imparável caudal criativo com que ocupa os seus dias, acumulando canções que depois aparecem em discos a solo, dos Throwing Muses ou dos 50 Foot Wave – consoante as guitarras em que as trabalha; Telecaster ou Stratocaster para os Muses, Collings ou Guild para o material a solo, SG ou Les Paul para os mais crus 50 Foot Wave –, criou uma plataforma em que disponibiliza para os seus subscritores criações em vários estádios de maturação e são aqueles quem, através de uma assinatura, acaba por financiar o tempo de estúdio para qualquer um dos três projectos. É assim há 11 anos.

Se as editoras estavam preparadas, na melhor das hipóteses, para lidar com 12 novas canções de um artista por ano, Hersh tinha essa mesma produção a um ritmo mensal – “Pareciam querer escapar-se de mim a toda a hora, como animais de estimação ou crianças”, ri-se. Mas agora, sem que o pudesse prever, essa imparável fonte de canções estancou. Ao ser submetida a um tratamento decorrente do recente diagnóstico de stress pós-traumático de que sofria, algo que a faz comparar-se a “um veterano da Guerra do Golfo”, Kristin confessa a sua impreparação para os efeitos do tratamento. E refere-se especificamente ao efeito que lhe revelou “a música como uma personalidade alternativa”, algo que fazia com que sentisse que o seu “processo de composição” era invisível para si. “Nunca tentei escrever uma canção, aconteciam-me simplesmente. E agora aquilo que mudou é que ainda não tentei escrever uma canção – nem sei como. Até agora não tinha de inventá-las.”

Daí que o seu novo disco a solo, Possible Dust Clouds – assim como as novas gravações dos Throwing Muses e dos 50 Foot Wave, já em curso –, resulte de um período criativo anterior ao tratamento (ocorrido há dois anos). A situação era tão nova na vida de Kristin Hersh que numa viagem promocional a Londres, quando chegou à BBC para uma entrevista em directo, ao aperceber-se de que tinham colocado uma guitarra no estúdio, alertou para o facto de poder não conseguir tocar. “Eu sei que isto soa a uma completa loucura”, desabafa, “mas toda a minha vida sempre que subia ao palco ligava a guitarra e sentia que havia outra personalidade a tomar conta de mim, a que chamo Rat Girl [título da sua autobiografia na versão norte-americana; em Inglaterra chamou-se Paraxodical Undressing], que sabia o que tinha de fazer.”

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Kristin Hersh sempre atirou as situações traumáticas para o palco e fez delas a sua matéria-prima Peter Mellekas

Depois do tratamento, não tinha a certeza se conseguiria prosseguir com essa mesma rotina. A sua anfitriã na BBC, no entanto, achou que podia manter os planos. “Eu a explicar-lhe tudo isto e ela em vez de compreender que eu não ia conseguir pediu-me para tocar o meu novo single. Olhei para ela, e como é rádio ninguém percebeu o que se passava entre nós as duas, ela a estender-me a guitarra e eu parada. Não se pode queimar muito tempo na radio, especialmente na BBC”, lembra, entre risos. “Peguei na guitarra, percebi que sabia os acordes e as melodias, a letra saiu sem que tivesse fingido, era tudo honesto e vivido. Eu que sempre olhei para o espaço enquanto actuava, via as minhas mãos a tocar. Estava encantada. Afinal, esta coisa das canções na minha vida não era algo de maligno, como receei durante tanto tempo. Quando terminei a canção, olhei e vi que a mulher estava a chorar tanto que não conseguia falar. Eu não sabia o que dizer porque era o programa dela [risos]. E então desatei a falar até ela se conseguir recompor.”

Trauma e vergonha

Ao longo dos anos, a autoconsciência em relação às canções permitiu a Kristin Hersh perceber o quanto a sua música “sempre veio de um sítio de trauma e de vergonha”, mas que a música “não preserva e atira para uma esfera de intensidade”. Em Possible Dust Clouds, a autora quis encenar “uma festa ruidosa”, o ambiente de “caos que é um concerto e que nunca é transmitido quando se grava ao vivo”. Para o conseguir, tocou quase todos os instrumentos, como sempre faz a solo, mas auxiliada por “quem quer que passasse pelo estúdio” – Fred Abong e David Narcizo (dos Throwing Muses), Rob Ahlers (50 Foot Wave), o filho Wyatt True e Chris Brady (dos Pond – os norte-americanos ligados à Sub Pop, não os australianos da família dos Tame Impala). “Felizmente, todos os meus amigos são músicos. Se tivesse aparecido qualquer outra pessoa ter-lhe-ia oferecido um donut e tínhamos conversado. Assim obriguei-os a tocar.”

Possible Dust Clouds arranca com LAX – um dos excelentes temas tipicamente saídos da pena de Hersh que povoam o seu décimo álbum a solo de material inédito –, baptizado com o nome do aeroporto de Los Angeles, inspirado pelo “estranho ambiente futurístico/pós-apocalíptico” que reconhece no espaço que é a sua casa de partida para viajar para qualquer outro lugar. E que lhe lembra também a porta de entrada “para o melting pot da América”. LAX é também um tema habitado por uma ideia de morte, mas que, como qualquer despedida, contém sempre uma sugestão de novo começo. É para aí que Possible Dust Clouds se dirige, sobretudo quando avançamos para No shade in shadow, Halfway home e Tulum, belíssimas e inesperadas canções no mundo de Kristin Hersh. Exemplos perfeitos daquilo que quer estabelecer com a tal ideia de “festa caótica” – responder com uma enorme algazarra festiva aos momentos em que se está arrasado e não se quer ir para a cama e embrulhar o corpo em autocomiseração. Em vez de recolhimento, Kristin Hersh sempre atirou as situações traumáticas para o palco e fez delas a sua matéria-prima. Não como terapia, mas como inescapabilidade de quem sempre tratou as canções como os filhos – limitou-se a olhar por elas e a mantê-las vivas, sem lhes ditar quem deviam ser.

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