O abuso do direito à greve

A “greve cirúrgica” dos enfermeiros, que já causou o cancelamento de mais de 6000 cirurgias programadas em cinco dos maiores centros hospitalares do país, é abusiva e desproporcionada.

O direito à greve dos trabalhadores está consagrado no Artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Por sua vez, o Código do Trabalho (Artigo 537.º) e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Artigo 397.º) consideram que os “serviços médicos, hospitalares e medicamentosos se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”, razão por que, nesses casos, é obrigatória a prestação dos serviços mínimos, segundo o princípio da proporcionalidade.

Efectivamente, como a greve não é um direito absoluto, terá de ser interpretada de harmonia com outros direitos fundamentais, como os direitos à vida, à integridade pessoal e à protecção da saúde, igualmente garantidos na CRP. Esta tem sido a jurisprudência dominante do Tribunal Arbitral do Conselho Económico e Social.

Porém, a “greve cirúrgica” dos enfermeiros decretada pela Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) e pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), criados em 2017, que já causou o cancelamento de mais de 6000 cirurgias programadas em cinco dos maiores centros hospitalares do país, desde 22 de Novembro, é abusiva e desproporcionada. Ademais, estas associações sindicais nem sequer compareceram nas reuniões convocadas para os passados dias 7 de Novembro e 27 de Dezembro pela Direcção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho, com vista à negociação de um acordo sobre os serviços mínimos da greve.

Esta insólita situação agravar-se-á caso se confirme a ameaça de nova greve dos enfermeiros, que afectaria os blocos operatórios de sete centros hospitalares, de 14 de Janeiro a 28 de Fevereiro, coincidente com o “plano de contingência sazonal de Inverno”, tal como o período crítico anterior. A duração anormal desta greve comprometeria, de forma intolerável, o Serviço Nacional de Saúde.

O adiamento das intervenções cirúrgicas, mesmo em doenças não oncológicas, como obstetrícia, cirurgia cardiotorácica, neurocirurgia ou oftalmologia, vem causando indizível sofrimento e, porventura, danos irreversíveis na saúde dos cidadãos, sobretudo, dos que não têm capacidade financeira para recorrerem aos hospitais privados.

Segundo o artigo 64.º da CRP, “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover (...) através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.

Acresce o estranhíssimo recurso à angariação de fundos de pessoas e entidades anónimas, o qual dificilmente se compatibiliza com os princípios da autonomia e independência, que, legal e constitucionalmente, regem as associações sindicais.

O Estado não pode demitir-se de garantir a saúde e a vida das pessoas, sob pena de ter de indemnizar as vítimas pelos danos materiais e morais sofridos. Em último caso, o Governo poderá aprovar a requisição civil para pôr termo a este escandaloso abuso do direito à greve.

Nesta quadra natalícia, faço votos para que, na reunião agendada para esta quinta-feira, dia 3 de Janeiro, haja um acordo justo e solidário, baseado na dignidade de todos os cidadãos, que é a matriz de um Estado de direito democrático.

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