Já foi visto hoje na igreja?

A radicalidade de Francisco reside na radicalidade dos Evangelhos.

A imagem de uma igreja quase deserta com umas quantas senhoras, quase sempre de negro e de lenço na cabeça, a murmurar rezas mesmo quando o sacerdote as diz e supostamente a comunidade deveria escutar, é o mais perfeito retrato da oportunidade das palavras do Papa Francisco, ontem proferidas.

Não disse nada de novo, é certo. Limitou-se a reproduzir São Mateus e, a bem da verdade, a falar em linguagem aggiornata. Mas não é isto que se pede a um líder religioso? Ou pretendemos que a Bíblia seja um programa de vida actual para todos os tempos e, por isso, teremos de o adaptar àquele em que vivemos, o que não é difícil, por se tratar da mesma massa humana, ou mumificamos os textos sagrados e eles passam a peças de museu. E peça de museu é tudo o contrário de uma igreja qual “hospital de campanha”, montada em tendas, junto de quem mais necessita dela.

A radicalidade de Francisco reside na radicalidade dos Evangelhos. Não é preciso conhecê-los a fundo para saber que Jesus abominava quem só assistia ao culto para se fazer notar, quem ia para os lugares da frente bater desalmadamente com a mão no peito, quem dá algo a alguém e disso faz publicidade. Quem se recolhe ao fundo, no escuro, arrependido do que fez, aquele que dá com uma das mãos sem que a outra o saiba, o que se humilha – no sentido cristão no termo e não literalmente, pois Deus não pretende isso de nós –, será exaltado. Mas Francisco podia ser menos incómodo e não ter esta mania de colocar o dedo nas feridas, começando pelas internas, pela Cúria, pelos pastores e pelos membros do rebanho que são de missa diária e de malvadez também diária. A congruência temporal não agrada a Deus nem a nenhum de nós. E corre o sério risco de permitir, com toda a justeza, que se diga: “se aquilo é ser cristão, então prefiro não o ser”.

As manifestações externas da partilha de um conjunto de valores têm lugar destacado em qualquer religião ou culto. Actualmente e por regra, estas não me cativam, preferindo pensar que, com toda a modéstia e a uma escala insignificante, o dia que me tocou viver e as pessoas com quem me cruzo, essas sim são igreja, qualquer que seja a sua denominação. Mea culpa, mea maxima culpa. Na verdadeira batalha que grassa no Vaticano, os empedernidos senhores de vermelho ou de púrpura que batem com a mão no peito e não dão exemplo de vida cristã dirão agora que o Papa até apela a que se não celebre o sacramento da eucaristia. Blasfémia! Bergoglio está cada vez pior, por se limitar a não fazer de conta que não existem elefantes na sala. Como é possível uma coisa destas? O homem não conhece as convenções?

Tudo, na verdade, a lembrar as inenarráveis séries Sim, Sr. Ministro e Sim, Sr. Primeiro-Ministro, em que a aparência suplanta o conteúdo, em que os comandos estão nas estruturas intermédias que querem fazer do PM ou do Romano Pontífice um fantoche que calça Prada, usa arminho, é teologicamente muito evoluído, faz a bênção urbi et orbi em várias línguas, mas que, como visto, teve de abdicar, tal era a putrefacção que o rodeava.

A Bíblia também ensina – como a vida comum de todos nós – que vivemos de acções e não tanto de palavras, por mais belas e inspiradoras que elas sejam. Se tenho fome de pão, não me venham com palavras vãs, se tenho sede de emprego ou de saúde, não nos limitemos a comiserações e a confortar o outro dizendo-lhe que ele está nas nossas orações. Uma igreja em campanha, em movimento para a verdadeira casa do Pai, é o programa apostólico de Francisco, que nunca ignorou que a casa do Pai é ali: em todo o lado onde existe alguém que de nós precisa.

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