Como um superagente e um milionário chinês planearam a venda de jogadores

O português Jorge Mendes juntou forças com um investidor de Xangai no lucrativo negócio da compra e venda de futebolistas. Documentos da Football Leaks dão uma ideia da extensão das suas ambições.

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Sergio Perez

No início de 2016, Jorge Mendes, o mais poderoso agente de futebol da Europa, estava, com um fato escuro (que é a sua marca registada), ao lado de Guo Guangchang, um milionário chinês, num hotel de luxo em Xangai. Estavam lá para lançar uma nova parceria perante uma plateia de celebridades do futebol, incluindo José Mourinho e presidentes de alguns dos maiores clubes europeus.

Mendes e Guo, um dos fundadores de um grupo chinês de investimento chamado Fosun, anunciaram que iriam criar uma agência para a expansão do futebol na China e ajudar na gestão da carreira de jogadores. Mas isso era apenas parte do plano.

O que Mendes e Guo não revelaram publicamente na altura, e desde então, é que também pretendiam criar uma rede de clubes e academias de futebol por toda a Europa e comprar e vender jogadores, segundo revelam emails e outros documentos internos. Uma rede destas permitiria aos parceiros passarem ao lado da proibição de investidores comprarem percentagens de jogadores e as negociarem. Com a ajuda de agentes de topo como Mendes, este tipo de transacções poderia garantir o lucro que, de outra forma, iria para clubes mais pequenos.

Segundo um documento interno da Fosun, a empresa chinesa considera que negociar e representar jogadores é a única forma sustentável de obter lucro na indústria do futebol.

O grupo Fosun, que engloba várias entidades controladas por Guo e mais dois co-fundadores, vale mais de 10 mil milhões de dólares e detém activos que vão desde o Club Med a imobiliário em Nova Iorque. Em 2016 definiu objectivos ambiciosos para o futebol. Em Agosto desse ano, um analista que trabalhava na Fosun enviou um email a um parceiro de Jorge Mendes, Luís Correia, a dizer o seguinte: “O nosso objectivo é criar um sistema completo no mundo do futebol consigo, com clubes de níveis diferentes e academias de treino… Acredito que, juntos, podemos estabelecer uma presença forte em todos os grandes campeonatos.”

Um dos objectivos era criar uma rede para identificar jogadores que poderiam ser vendidos mais tarde com lucro, segundo mostram documentos e emails da Fosun. Um email de 2016 de um executivo da empresa fala em investir e negociar jogadores como “a parte mais lucrativa do negócio na indústria futebolística”.

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A Fosun, Guo, Mendes e Correia não responderam aos pedidos de entrevista da Reuters para comentar o assunto.

Estas revelações vêm de um acervo de emails, contratos e outros documentos de várias entidades ligadas ao futebol que foram obtidos pela revista alemã Der Spiegel e a que a Reuters teve acesso no âmbito da plataforma Football Leaks, partilhados com o consórcio European Investigative Collaborations.

Os documentos analisados pela Reuters vão até meados de 2017. Não é claro até onde avançou a parceria entre Mendes e a Fosun desde então.

As transferências de jogadores são muitas vezes mais lucrativas do que ser dono de um clube, dizem académicos que estudam o desporto. Mas é um modelo de negócio que muitos adeptos, dirigentes e donos de clubes criticam. Dizem que desvia o dinheiro para agentes e investidores, em vez de ajudar os clubes a manterem a competitividade que os adeptos pagam para ver.

Ivo Belet, um eurodeputado belga que tem olhado com atenção para o futebol, diz que a relação entre clubes e agentes é “uma grande ameaça para o futebol europeu e devia ser investigada com mais atenção”.

A integridade da competição no futebol está em risco quando há muitas ligações entre jogadores, agentes e os donos das equipas, aponta Belet, e a União Europeia precisa de “continuar a pressionar” as autoridades do futebol para que a transparência seja maior.

“Essas relações… são grandes ameaças para a integridade do futebol”, refere o belga.

Simon Chadwick, professor de Gestão Desportiva na Universidade de Salford, está preocupado com os efeitos financeiros desta proximidade entre clubes, agentes e investidores. “Se o dinheiro começa a sair do futebol de uma forma mais evidente, isso pode potencialmente afectar os clubes mais pequenos.”

Os organismos que tutelam o futebol dizem que a transferência de jogadores entre clubes deve promover a competição e ajudar as equipas a ganhar troféus e não ajudar os investidores a terem lucro.

“O futebol é um negócio de entretenimento e não um negócio financeiro”, diz Didier Quillot, director executivo da Ligue de Football Professionel, organismo que gere o futebol profissional francês.

Potencial enorme

Mendes começou como jogador, mas virou-se para os negócios depois de não ter ido muito longe nos relvados. Começou por ter um videoclube e um clube nocturno em Portugal. Nessa altura, conheceu um guarda-redes chamado Nuno Espírito Santo e negociou a sua transferência para um clube maior. Era a carreira de agente a chamar por ele.

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Diogo Jota, uma das referências actuais do Wolverhampton Scott Heppell/Reuters

Mendes fundou a Gestifute e Luís Correia, que é seu sobrinho, tornou-se parceiro. No início do século XXI, Mendes tornou-se agente de José Mourinho e de Cristiano Ronaldo, que viria a ser uma das maiores “estrelas” da sua geração. Mendes nunca olhou para trás. Nos Globe Soccer Awards de 2017, foi considerado o melhor agente do mundo pela sexta vez.

Os jogadores são comprados e vendidos pelos clubes. Se alguém que não o clube tem uma parcela dos “direitos económicos” do jogador, isto é considerado “third party ownership” (co-propriedade de passes de jogadores). Jornais em Portugal e no Reino Unido têm divulgado nas últimas duas décadas que a Gestifute tem participações nos direitos económicos de uma dezena de jogadores importantes. Mendes nunca revelou publicamente pormenores sobre esta matéria.

Mas, segundo mostram documentos a que a Reuters teve acesso, a participação da Gestifute em direitos económicos de jogadores vai mais longe do que se pensava. Até ao final de 2015, a Gestifute tinha parcelas em direitos de mais de 50 jogadores de topo, de acordo com um contrato assinado entre a empresa de Jorge Mendes e a Fosun.

Com isto Mendes fazia crescer a sua influência e a possibilidade de ter lucro sempre que estes jogadores fossem comprados e vendidos. Em Julho de 2014, por exemplo, a Gestifute comprou 40% de um jovem jogador chamado Diogo Jota ao Paços de Ferreira. Jota tinha na altura 17 anos, a começar a sua carreira profissional, e a Gestifute adquiriu a participação por 35 mil euros, de acordo com um contrato de venda.

Jota tornou-se uma “estrela” em ascensão e, em Março de 2016, o Atlético de Madrid comprou-o por 6,4 milhões. A participação da Gestifute rendeu à agência cerca de 2,5 milhões, segundo atestam emails e uma nota de pagamento. Outro agente envolvido no negócio teve direito a 20% do valor da transferência, deixando o Paços de Ferreira com direito a apenas 40% do total.

O Paços de Ferreira diz que o negócio Jota é um “assunto encerrado” e acredita que foi o melhor negócio possível na altura, de acordo com as circunstâncias. Jota não respondeu a um pedido de comentário feito através do seu actual clube, o Wolverhampton; o Atlético de Madrid também não respondeu ao pedido da Reuters.

A Fosun estava entre os que viam as vantagens de estar associada a Mendes e às suas relações no mundo do futebol. Em Outubro de 2014, a Fosun contactou-o e sugeriu uma parceria, em que a Fosun entraria com capital e Mendes escolheria os projectos futebolísticos em que ambos poderiam investir.

Luís Correia parecia entusiasmado com a ideia. “Na minha opinião, o potencial é enorme”, escreveu Correia a Mendes num email de 31 de Outubro de 2014.

Um documento interno da Fosun circulou entre os seus executivos em Novembro de 2014 com o plano da empresa. Um slide com o título “Construir um império no negócio futebolístico” mostrava um organograma dividido entre um negócio “não chinês” e uma “entidade chinesa”. O negócio “não chinês” incluiria a Gestifute, cuja actividade era descrita como “partilha de direitos económicos de jogadores de futebol”.

Enquanto as duas partes negociavam um entendimento, a Fosun mostrava-se efusiva na sua admiração por Jorge Mendes. Uma apresentação interna de Setembro de 2015, em chinês e preparada por um executivo da Fosun, falava da força do modelo de negócio de Mendes. “Mendes suplantou a influência de todos os outros agentes. Controla vários clubes de forma indirecta nos principais campeonatos europeus por força da dependência que os clubes e os jogadores têm da sua habilidade negocial”, lê-se na apresentação. “Isto faz com que consiga colocar os seus jogadores e treinadores nestes clubes, atingindo assim um controlo total da carreira dos jogadores e uma influência a longo prazo nos clubes.”

Um mês depois, outra apresentação da Fosun diz que, com muitos clubes a terem dificuldades para equilibrarem as contas, empresas como a de Jorge Mendes eram as únicas que podem “ter lucro de forma sustentada na indústria”.

A Start SGPS, a holding de Jorge Mendes, teve proveitos líquidos de 25,1 milhões de euros em 2015, segundo atestam os emails. Só dez clubes europeus tiveram proveitos líquidos mais elevados, segundo dados compilados pela UEFA.

Jorge Mendes não respondeu aos pedidos da Reuters para comentar esta avaliação da Fosun.

Em Setembro de 2015, a administração da Fosun concordou com a compra de 15% da Start SGP, que detém a Gestifute e outros interesses de Jorge Mendes. Guo e os restantes accionistas aceitaram pagar 42 milhões de euros por essa fatia, avaliando o grupo em quase 280 milhões de euros, e obtiveram o direito de elevar essa percentagem até 37,5% ao longo do tempo.

“Bingo!!!!!!”, escreveu Correia num email dirigido a Mendes e a Carlos Osório de Castro, advogado da Gestifute e um dos directores da empresa, quando soube que a Fosun tinha aceitado os termos do negócio.

De acordo com o contrato de venda da participação da Gestifute a entidades controladas pelos fundadores da Fosun, a agência de Mendes tinha adquirido fracções dos passes de 54 jogadores em Novembro de 2015. Esse rol incluía nomes como Diogo Jota, o guarda-redes Ederson Moraes ou Fabinho, que actualmente representa o Liverpool.

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Ederson não respondeu às perguntas que lhe foram enviadas via Manchester City, o seu actual clube. E o mesmo aconteceu com Fabinho.

Na altura do acordo Fosun-Gestifute, Jorge Mendes falou publicamente sobre as ambições dos seus parceiros na China, e não na Europa. “Sinto-me muito honrado por fazer parte deste projecto e poder ajudar o futebol chinês a tornar-se uma nova potência mundial”, afirmou o agente numa declaração então emitida.

A Gestifute não respondeu a um pedido de comentário sobre o negócio com a Fosun ou sobre a propriedade dos direitos económicos de muitos jogadores. Osório de Castro também recusou comentar, argumentando que o conteúdo das perguntas da Reuters foi formulado “com base em informação obtida com recurso a um ataque criminoso a informação privilegiada”.

A proibição do TPO

Houve, porém, um problema para o modelo de negócio que Mendes e a Fosun pretendiam promover. Em 2012, a UEFA determinou que a partilha dos direitos económicos dos passes dos jogadores distorcia a competição e retirava dinheiro do futebol; e em Maio de 2015 a FIFA aplicou uma nova regra com o objectivo de acabar com essa prática, a chamada third-party ownership (TPO).

Não existem registos de contratos deste género, o que torna impossível saber quão recorrente era ou continua a ser esta prática, e a influência de alguns dos detentores destes direitos pode ser subtil. Alguns contratos pré-2015 estipulavam que os clubes teriam de comprar uma parte do passe dos atletas, se rejeitassem uma oferta lucrativa pelos jogadores em causa, segundo se lê em emails consultados pela Reuters. Este tipo de acordo poderia obrigar os clubes a venderem futebolistas que pretendiam manter no plantel, fazem notar alguns especialistas.

Os dirigentes entendiam que apenas os jogadores e os clubes deveriam influenciar o timing e o destino dos atletas, em caso de transferência. E os organismos que representam os futebolistas, como a FIFPro, defendiam que a TPO ou acordos do género criavam incentivos que levavam os empresários a convencer os atletas a aceitarem transferências que eram mais do interesse do agente do que do próprio jogador.

Outra preocupação prendia-se com o facto de serem os investidores financeiros a retirarem os lucros do futebol em detrimento dos clubes mais pequenos, que muitas vezes dependem dos valores dos direitos de formação que decorrem das vendas de estrelas em ascensão.

Mendes opôs-se à proibição da FIFA, alegando que a TPO partilhava o custo dos jogadores e ajudava os clubes mais modestos a contratarem melhores jogadores. Esta medida estava “a matar a competição”, disse à Reuters numa entrevista, em Janeiro de 2015.

De qualquer forma, esta proibição pouco contribuiu para coarctar as ambições da Fosun. A FIFA tinha proibido a TPO, mas não havia nada que proibisse a Fosun de comprar um clube de futebol, que poderia deter livremente os direitos económicos dos jogadores sem quebrar as regras.

Inicialmente, a Fosun ponderou comprar o Espanyol, emblema da Catalunha, e também clubes em Portugal e em Itália. Alguns emails mostram que a empresa solicitou conselhos a Jorge Mendes sobre estes possíveis negócios e propôs que Mendes investisse no Espanyol. Nenhuma das intenções avançou e o Espanyol também não respondeu às perguntas da Reuters.

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O Espanyol também esteve na mira da Fosun Stringer/Reuters

Ainda assim, a Fosun continuou a mostrar interesse em trabalhar com Mendes. “Se Fosun fizer algum negócio com um clube de futebol, será apenas para futuro benefício da nossa parceria”, escreveu Jeff Shi, chefe da divisão de media da Fosun, num email enviado a Correia em Agosto de 2015.

Comprar o Wolves

A Fosun ainda tentou comprar um outro clube português e outro inglês, mas os negócios voltaram a não se concretizar. Depois, em Maio de 2016, Correia enviou um email a Shi a informá-lo sobre um clube inglês chamado Wolverhampton, que estava no mercado por cerca de 40 milhões de libras. O “Wolves” atravessava dificuldades financeiras e desportivas. “Vale a pena olhar para isto”, acrescentou Correia.

Em cerca de um mês, a Fosun decidiu mesmo comprar o Wolverhampton e Jorge Mendes continuou a ser importante para a estratégia da empresa chinesa.

Antes de uma reunião entre Mendes e o co-fundador da Fosun Wang Qunbin, Shi escreveu a Correia: “O sr. Wang terá muito gosto em aprender com o Jorge como se gere um clube e promovê-lo à Premier League. E sabe be.”

A troco da sua orientação, a Fosun prometeu a Mendes uma recompensa significativa. “Jorge pode encarar o Wolverhampton como o mais fiável dos parceiros e como uma fonte de receitas durante um longo período de tempo”, escreveu Shi.

Nem a Fosun, nem Wang, nem o clube responderam a um pedido de comentário sobre a estratégia prosseguida pelo Wolverhampton.

Entre a decisão da Fosun de comprar o clube em 2016 e Fevereiro de 2018, o Wolverhampton gastou mais de 65 milhões de euros na compra de passes de jogadores. Nalguns casos, os reforços eram representados por Jorge Mendes ou o agente servia de intermediário nas transferências, referia o clube em comunicado. Os detalhes sobre as transferências não são públicos, por isso a Reuters não pôde determinar a real extensão do envolvimento de Mendes.

O clube escolheria mais tarde como treinador Nuno Espírito Santo, antigo guarda-redes que ajudou a lançar a carreira de Mendes como agente.

As transferências ajudaram a projectar o Wolverhamton para a Premier League, em Agosto. E também suscitaram críticas dos rivais. Em Março de 2018, o proprietário do Leeds United, Andrea Radrizzani, lamentou em entrevista que o Wolves tivesse uma vantagem injusta, argumentando que a relação de Mendes com os principais jogadores permitia ao Wolves comprar talento que não estava acessível aos outros clubes. Dirigentes do Aston Villa também questionaram como é que o Wolves conseguia fazer contratações de tão alto nível.

Os dirigentes do Wolverhampton já tinham antes admitido que Jorge Mendes era um consultor, mas rejeitaram uma relação de privilégio com o português. “O Jorge é um agente como qualquer outro”, garantia Kevin Thelwell, director desportivo do clube, em Junho de 2018. A direcção do Wolves não respondeu às perguntas da Reuters sobre a relação com o empresário.

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Em Abril, a Football League inglesa anunciou que tinha analisado a relação de Jorge Mendes com o clube e que não tinha encontrado nenhuma quebra nas regras que determinam que um agente não pode ter uma função executiva num clube ou controlar a sua estratégia. Adiantou, na altura, que “Mendes não tem qualquer função no clube”.

Depois de adquirir o Wolves, a Fosun e Mendes aceleraram os planos mais ambiciosos para criar uma rede que previa academias de treino e outros clubes.

Em Agosto de 2016, Yang Zhang, à época um analista de negócios da Fosun, enviou um email a Correia com o título “Oportunidades no futebol em Portugal”. O gigante chinês pretendia avançar com o negócio da compra do Rio Ave e encetar uma parceria com uma academia de treino. Zhang também assumiu que a Fosun queria comprar um “clube TPO”. Esse desígnio permitiria à Fosun e a Mendes disporem de plataformas de treino e venda de jogadores de diferentes escalões, sem que houvesse violação dos regulamentos, porque os clubes são livres de investir em jogadores.  

“Portugal é o lugar perfeito para começar com menos regulação, maior viveiro de talento e a tua ajuda” escreveu Zhang.

Contudo, em Abril de 2017 Shi dirigiu um email a Correia considerando que as restrições impostas pelo Governo chinês à aquisição de empresas no estrangeiro, que foram reforçadas em 2016 e 2017, estavam a complicar as intenções da Fosun de comprar o Rio Ave. O Rio Ave não respondeu a um pedido de comentário sobre o assunto.

O Wolves, dois anos depois de ter sido comprado pela Fosun, chegou ao primeiro escalão do futebol inglês. A equipa conta essencialmente com jogadores formados em Portugal e, no primeiro jogo disputado na Premier League 2018-19, cinco dos 11 titulares eram portugueses.

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