A opacidade do real

O Parque Mayer é um lugar e um tempo, portanto um cronótopo no sentido do conceito criado pelo filósofo e teórico da linguagem russo Mikhail Bakhtin. António-Pedro Vasconcelos ao filmá-lo não o limita ao lugar hoje quase desabitado. Daí recriá-lo com algum artifício como se de um outro palco se tratasse. A praça dos teatros é, em si, também um palco, numa multiplicação de palcos que António-Pedro Vasconcelos experimentara já no injustamente desvalorizado A bela e o paparazzo, como acabam por sê-lo ainda o bordel, a casa de jogo - na baixa lisboeta havia ainda clubes onde se jogava à revelia de uma lei publicada meia dúzia de anos antes que pretendia acantonar essa prática a áreas periféricas e limitadas, com a inauguração do casino Estoril em 1931 - e naturalmente o próprio teatro, onde se encena e finalmente se estreia uma nova revista, “Direita volver”.

Aliás, tipicamente o cenário da revista (no próprio palco) era tradicionalmente o da geografia lisboeta, onde faz sentido referir-se à (praça da) alegria - à direita - e à (avenida da) liberdade - à esquerda - como lugares adjacentes na topografia da cidade, e que tem um efeito certeiro na rábula da despedia, em figura de arlequim ou de palhaço rico numa vaga aproximação quixotesca, de Mário (Francisco Froes), antes de partir para o exílio, desgostoso com a evolução que o país está a tomar depois da aprovação plebiscitária da constituição do Estado Novo em 1933. Voltar as costas ao país e partir é, aliás, um tema recorrente na obra de António-Pedro Vasconcelos, desde os iniciais Perdido por cem e Oxalá, imediatamente antes e depois da revolução de Abril, até mesmo ao mais próximo Call girl.

É esta Lisboa “cantigamente” - aproveitando o título de uma série televisiva de 1975, onde significativamente  se contava a história do fim da monarquia à queda do fascismo num pano de fundo do cinema, do teatro e da música e em que António-Pedro Vasconcelos notoriamente dirigiu o segundo episódio - que Parque Mayer evoca, e mais do que isso homenageia como a legenda final assume claramente, optando pelo ano da constituição plebiscitada já com Salazar no poder (e também da ascenção de Hitler na Alemanha) num tom que, apesar de tudo, é o de A canção de Lisboa de Cotinelli Telmo, comédia realizada nesse mesmo ano.

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Tudo isto é claramente do domínio do artifício e o que se pode exigir a Parque Mayer não é a impressão de realidade, que sempre fascinou Hollywood, mas o rigor de construção onde claramente se afirma como o mais perfeito filme de António-Pedro Vasconcelos. Aliás, o cinema nasce como um artifício de feira, não muito fora do clima de farturas e tirinhos do Parque Mayer, e a sua afirmação no plano elevado de uma arte, dita a sétima, tem que ver com uma linguagem que Griffith e Kuleshov, e muitos outros, foram inventando, mais do que com a moral jansenista da justa colocação da câmara que Rossellini visava mais ainda que Godard e num e noutro caso acabou por estiolar a força e criatividade dos seus cinemas (e, no caso de Godard, o converteu paradoxalmente à montagem e à produção de signos mais que fotogramas, como se comprova no recente O livro da imagem).

Inteligentemente em Parque Mayer o artifício, e o palco onde de certa maneira é esperado fingir, é associado à resistência, com a Madame Calado (Alexandra Lencastre) - e o apelido não deixa de ser evidentemente significativo – a justificar pela liberdade o submundo da prostituição onde ganhou alguma espécie de poder e voz, e Mário numa cena emblemática a mostrar a Deolinda (Daniela Melchior) que é no palco que está a liberdade e que é preciso não abdicar do sonho.

Aliás a crise de choro de Deolinda que precede a cena, desponta quando no ensaio tem que fingir em tom de comédia a própria realidade de vítima de um machismo abusador. Parque Mayer parte da caricatura de figuras tipificadas da revista (a saloia, o galã, o polícia, o vigarista, o zé povinho), aliás habitualmente usadas nos cartazes e na publicidade na imprensa, e dá-lhes progressivamente uma dimensão mais complexa e inserida no mundo real.

É aí que surge o sonho, e a ambição de sair da aparente prisão do estereótipo, paralisado pelo medo que se constitui na vertigem da fidelidade a si próprio e na ousadia de ser o que se é. “Não consigo fazer este papel”, é o desabafo da actriz principiante na mistura das emoções da vida e da cena.

Na sua aparente leveza Parque Mayer é também um estudo sobre o medo, e como o humor, o palco e o grupo onde a solidariedade se experimenta, o ajudam a modelar e dominar.

O beijo fingido, na vida e não na cena, é a tentativa de Mário se forçar a uma aparência de romance heterossexual, para se proteger da violência a que é submetido na recém-inaugurada Mitra onde o abuso é o da suposta ordem social, em relação aos marginalizados, onde a homossexualidade se incluía.

A repressão do Estado Novo que se avoluma nessa fase inicial do regime é também a da sobreposição da cena pública face à cena íntima, muito bem retratada de forma contida no encontro amoroso de Mário com João dos Reis (Tiago Rodrigues).

João dos Reis é, aliás, uma personagem a singrar na nova classe dominante, mas circulando também nalguma ambiguidade de sentimentos clandestinos, que o levam a expulsar “numa penada” Augusto (Sérgio Praia), o marido violento de Deolinda, apesar de recém-admitido na polícia política. “Não tem que me agradecer…porque eu nunca estive aqui”, remata para Deolinda ao retirar-se. Do mesmo modo são outras personagens secundárias definidas em diferentes dimensões  que se procuram conciliar: a Madame Calado, dona de bordel, capaz de protecção e compaixão mesmo no ambiente de exploração que dirige, e, principalmente, José (Miguel Guilherme), empresário teatral excelente no difícil equilíbrio entre a responsabilidade protectora sobre a sua trupe, e a dignidade que o leva a apoiar o grito pela liberdade de Mário ao mesmo tempo que convive com delicada diplomacia com a nova censura capaz de asfixiar essa mesma liberdade com um sorriso sonso.

Mas as luzes da ribalta iluminam especialmente o par equívoco que Deolinda e Mário personificam, em contraponto constante com o fadista estreante no parque, Eduardo (Diogo Morgado), que estende o palco abusivamente a todas as situações da vida num permanente estado de representação à la Clark Gable.

Deolinda é a “sardinha apaixonada” (fado com letra do próprio António-Pedro Vasconcelos, já previamente gravado pela filha Patrícia Vasconcelos), que “caiu na rede coitada, ia ter com o namorado…perdeu-se de tanto amar”, que Daniela Melchior torna uma presença quase mágica com a vivacidade e beleza que um dia Victoria Abril, antes de Almodôvar, trouxe a Sem sombra de pecado de Fonseca e Costa, comédia situada uma década depois também no Estado Novo.

Eduardo é o “carapau de corrida” (outro fado de Vasconcelos também já gravado em versão jazz pela filha) ou “apenas jaquinzinho”, “com falinhas mansas para eu emprenhar de ouvido, disseste a menina dança, era a canção de bandido”, numa caricatura do sedutor marialva com que Diogo Morgado inteligentemente colhe a veia do memorável António Silva ou mesmo do José Nuno Martins de Perdido por cem, filme de estreia de António-Pedro Vasconcelos.

No ponto charneira, entre os dois, Mário surge como o autor sofrido, acabado de chegar, com a vulnerabilidade de quem acredita poder ter uma voz a que tem o dever de ser fiel. Ele é o encenador no palco a que a vida real parece não prometer a mesma autoridade, como o protagonista de Balas sobre a Broadway de Woody Allen, que acaba também por partir no final, filme que Parque Mayer a espaços não deixa de lembrar. A personagem pertence, sem dúvida, à galeria dos heróis frustrados de António-Pedro Vasconcelos, que Francisco Froes defende muito bem nas cenas de comédia, mas também, à moda do modelo da revista, nos números sérios, particularmente a descida aos infernos da Mitra e a ascensão exaltante, mesmo se sofrida, do monólogo de despedida no palco.

Parque Mayer, no entanto, vai além deste simples exercício proclamatório e reflete com óbvio sentido de actualidade sobre os momentos históricos em que o nevoeiro se adensa e a tirania vai ocupando espaço, debaixo dos olhos desatentos de muitos, aparentemente sem que o mal seja visível e até com insuspeitadas conivências. Será interessante pensar o filme de António-Pedro Vasconcelos em contraponto com o percurso do recém-falecido Bernardo Bertolucci em 1900 (ou até, um ano depois entre nós, A Santa Aliança de Eduardo Geada, curiosamente com uma perninha também no Parque Mayer). Bertolucci como Vasconcelos provêm de uma ética cinematográfica de Rossellini e Godard, onde a câmara revela uma verdade invisível a olho nu, mas a recusa de prosseguir por uma espécie de anti-cinema e pelo contrário o fascínio pelo cinema de grande produção - que nos anos oitenta foi acessível a muitos cineastas europeus até aí acantonados no cinema de arte e ensaio -, tê-los-á conduzido a um aparente impasse, onde o italiano teve a ilusão de poder filmar, ficcionado, o momento da libertação do 25 de Abril italiano de 1945, em que de certo modo a luta de classes se tornou por um curto período visível, e António-Pedro Vasconcelos se desespera com o que o cinema não parece conseguir revelar, ou seja tornar visível.

Ao procurar a verdade num cinema do artifício, da ficção, da representação, António-Pedro Vasconcelos estará perto de um salto criativo a que lhe faltam talvez os meios de produção, mas não o engenho. Parque Mayer distingue-se claramente pelos méritos técnicos, não apenas dos actores - onde Miguel Guilherme mostra uma veterania segura com uma empatia que se pode tornar idêntica à que o cineasta teve com Nicolau Breyner, de que se recordará, de Os imortais, a sua (antecipada?) morte representada, tocando guitarra numa casa de fados, com a anfitriã Natalina José que regressa agora em Parque Mayer, como a dona do Restaurante da Alzira; mas também do trabalho de argumentista uma vez mais de Tiago R. Santos; da direcção musical, também de outro colaborador habitual de António-Pedro Vasconcelos, José M. Afonso; e evidentemente da excelente qualidade da direcção de fotografia de Miguel Sales Lopes, que já colaborara em anteriores filmes de Vasconcelos, nomeadamente no anterior “Um amor impossível”.

Atribuindo importância a um género teatral aparentemente menor como é a revista, António-Pedro Vasconcelos talvez se aproxime do conceito de carnavalização ainda de Bakhtin, que em plena repressão estalinista estudava o realismo grotesco da Idade Média em que “a palavra de dupla tonalidade permitiu ao povo que ria, e que não tinha o menor interesse em que se estabilizassem o regime existente e o quadro do mundo dominante (impostos pela verdade oficial), captar o todo do mundo em devir, a alegre relatividade de todas essas verdades limitadas de classe, o estado de não-acabamento constante do mundo, a fusão permanente da mentira e da verdade, do mal e do bem, das trevas e da claridade, da maldade e da gentileza, da morte e da vida.”

Crítico de cinema e autor de Cinema português, ano Gulbenkian

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