Jerry Paper, o bebé com voz de homem grande

Disco pouco comentado, mas com muito sumo lá dentro: eis Jerry Paper, o nerd mais cool de Los Angeles a cantar aquilo que não pode contar aos amigos que não tem.

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Esperamos ver Jerry Paper em breve num palco português Monika Mogi

Quem começar por “ler” este disco pela capa, apanhará, logo aos 11 segundos de Your cocoon, uma surpresa, e das grandes. É das goelas deste copinho de leite a quem ainda mal acabámos de apreciar a figura que saem aqueles dois primeiros versos — paradigmáticos na definição do perfil deprê-cool de Paper — num inesperado e límpido vozeirão: “You say there’s nothing else for me / That’s only true if you’re not free”. É, portanto, este “cromo” — que na capa podemos ver de flácido tronco coberto por uma camisola muito high school, caixa-de-óculos despenteado e um ovo junto ao peito (?) —, com o seu quê de “woodyallenesco”, o responsável por esse efeito paradoxal, de estranheza, que só nos começará a abandonar já a meio do disco, quando finalmente nos habituamos ao seu tom grave, clássico, démodé, até. Sim, um loser do liceu (Losing the game é título de uma das canções, no “game” se podendo ler. “vida”) que podia ter saído do Animal House de John Landis (ou, geracionalmente mais recente, de um American Pie) com um acento à Sinatra e Dean Martin (é também interessante, por isso, imaginá-lo futuramente num registo jazz), weirdo que, quando finalmente se revolta, em vez de atestar um inesperado soco no mauzão da turma, saca de um vozeirão de old soul que já viu tudo o que há para ver no mundo.

Falámos em Sinatra como podíamos ter falado de Bing Crosby ou Tonny Bennett: aura de gentleman, de flâneur, sim, mas aqui tintada, por força quer das modulações imprimidas, quer do texto, por uma gravitas introspectiva, inadaptada, amargurada, cómica também (conferir o videoclip de Grey area). Na estreia pela selecta Stones Throw, editora independente de Los Angeles (à qual Jerry regressou à boleia do novo disco, depois de um período em Nova Iorque) a quem pertence um dos melhores catálogos da música popular dos anos 2000, é tentador vê-lo, aqui co-produtor ao lado de Matty Tavares (dos BadBadNotGood), na mesma página de um Mayer Hawthorne (também já editado pela Stones). Se bem que, em rigor, o primeiro esteja numa linha bem mais rythm & blues (os originais) (o low-fi e a electrónica dos seus trabalhos anteriores são aqui postos de lado), logo mais próximo, por exemplo, de um Nick Waterhouse (por sinal também californiano e por quem, diga-se de passagem, se aguarda ansiosamente o regresso). Se o low-fi era a sua marca distintiva até esta parte, atributo visível no seu som abafado, granulado, de “bedroom studio”, aqui, pelo contrário, ele desdobra-se airosamente em orquestrações dilatadas, sofisticadas (o efeito de rewind com que se inicia Your cocoon, primeiríssima canção do disco, pode, aliás, servir aqui de raccord “sónico” em relação aos seus trabalhos anteriores), cujo único defeito é, em boa verdade, a sua — a certa altura — indisfarçável redundância.

Algo que, sendo lamentar no que de banalizante ou aborrecido empresta ao disco (Losing the game, não fosse a voz de Jerry e um ou outro arranjo mais esmerado, poderia ser musiquinha de um Jack Johnson), é, quanto a nós, francamente pressentível a partir de uma faixa em concreto, Everything borrowed (não nos lembramos, aliás, de uma tal clara cisão entre o valioso e o menos bom num disco desde o Anti de Rihanna). Razão pela qual a última delas, More bad news, soa a isso mesmo: a “mais” canções tristes, a “mais” do mesmo (sem que isso apague a maravilhosa, ansiolítica, melancolia dos versos: “Driving over to the pharmacy / To get me something that is good for me / Take it once or twice, it doesn’t work”). Até aí chegarmos, porém, motivos de sobra existem para levarmos Like a baby como um dos mais interessantes álbuns de 2018, desde logo pela sua permanente atmosfera glico-psicadélica (quando não surrealista, veja-se o videoclip de Your cocoon): as cores (e voltamos à capa) pop, bubble gum, de um idílico subúrbio americano (os de Tim Burton, Lynch), front yards que, na sua perfeição (logo, urbano-depressivos), se revelam tão postiços quanto os malls e sua omnipresente publicidade. Commercial break funciona, por isso, neste sentido, quer como título ilustrativo desta mundividência, quer como tentativa de fuga, de corte (break), com a mesma. Veja-se Did I buy it?, alucinogénica balada (em colaboração com os excelentes Mild High Club) em que Paper sobrevoa as asseadas ruas do american dream com a retina dilatada: “In my car, I think about the big stuff / Money, fame, misery and those kinds of things / I hear talk that it’s the end times / They’ve been saying that from the start / There comes a time when we all must ask / ‘Did I buy it, or was it sold to me?’ / In the square, I see Mary in her new suit / She waves ‘Hello’ / But my hands weighed down by my shopping bags / I can’t wave back”. É quando se centra na soul, nos blues e na pop psicadélica (e menos no pop rock que, em Something’s not right, é saudavelmente elidido pela entrada dos synths) alimentados a sintetizadores — mas também, não fosse ele californiano, com uns certos ecos de surf rock (Huge laughs) — que Paper atinge os seus picos de intensidade (até um órgão reggae como o de A moment é “psicadelizado” nas suas mãos).

É o caso claro de Baby, baixo borbulhante e arranjo country de guitarra a fazerem a cama para uma reflexão só aparentemente gozona (bem filosofante, na verdade, ele que é um obcecado por religiões e espiritualidades alternativas) sobre os nossos egos e o papel das palavras no conflito (outra das suas marcas: a seriedade do texto mascarada pelo humor deadpan, o ouvinte quase se “esquecendo” de atentar nas palavras): “Underneath the flesh facade / We’re all babies playin’ big / Same feelings, just more words / But words are the world (...) / Words conceal simple desires that drive our spoken world (.) / Now imagine your enemy as a child / We’re just kids that have hid our ids behind big clusters of words”. Ou, bem assim, o caso de Grey area, que, na companhia de Weyes Blood, transpira algo de chanson ao mesmo tempo que dá ares de um bolero pop, assim ao jeito da Something stupid imortalizada nos anos 70 por, nem de propósito. Sinatra (embora seja um original de Carson Parks). Para quem quiser iniciar 2019 cheio de energia, este não é, definitivamente o disco certo; para quem, independentemente do mood, pretenda entrar pelo novo ano com música da boa, então é carregar no play. E acreditar que possamos ver Jerry para breve num palco português, possivelmente na companhia da sua actual backing band, nada mais, nada menos do que os BadBadNotGood.

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