"A União Europeia não quis ver a deriva para o autoritarismo"

Ana Gomes conclui em Maio o terceiro e último mandato como eurodeputada. Estabeleceu este limite voluntário como medida de higiene política, o que a legitima para duras críticas.

"A União Europeia não quis ver a deriva para formas de autoritarismo"

A partir do alargamento, a União Europeia (UE) foi laxa na verificação das políticas e projectos nacionais com o cumprimento dos Direitos Humanos, denuncia quem em 2004 foi eleita pela primeira vez para o Parlamento Europeu. Diplomata de carreira, integrou e dirigiu várias missões. Falou ao PÚBLICO no regresso do Iraque e reflectiu sobre os caminhos da Europa. Houve laxismo perante as formas de autoritarismo que ganharam espaço. O pior cego é o que não quer ver.

A UE assenta em valores democráticos e na defesa dos Direitos Humanos. O que se passou para que os eurodeputados aprovassem a aplicação do artigo 7º do Tratado de Lisboa à Hungria e Polónia por quebra dos valores europeus?
Os Direitos Humanos fazem parte do acervo fundador da UE e não é concebível uma união de Estados onde impera o Estado de Direito que não cumpra os Direitos Humanos. É curioso que a nível europeu faz-se a distinção entre Direitos Humanos de terceiros países, e em relação à UE fala-se de direitos fundamentais, porque sem eles não havia esta construção de paz que repousa no primado do Direito. Durante muito tempo foi dado por adquirido, com o alargamento e a adesão de diferentes países, em termos de Direitos Humanos e do Estado de Direito há os critérios de Copenhaga que os países têm de cumprir. A partir da entrada desses países ninguém mais controla, é esse o problema. Ainda existem, por exemplo, para a Bulgária e a Roménia, as comissões de verificação que todos os anos produzem um relatório, mas tem sido bastante formal. E não se quis ver a deriva para formas de autoritarismo sob a designação de democracia iliberal de Viktor Orbán [primeiro-ministro húngaro], o que é em si uma contradição. A democracia ou é liberal no respeito pelas liberdades cívicas ou não o é.

O Parlamento Europeu em 2010 começou a ficar muito preocupado com a situação na Hungria e, em 2013, o deputado Rui Tavares fez um relatório arrasador para várias áreas nas quais a Hungria de Orbán não estava a cumprir os preceitos de Copenhaga, pelo contrário até os violava ostensivamente. Eram necessárias, então, medidas políticas, o Conselho e a Comissão não as quiseram, mas o Parlamento Europeu aprovou o relatório de Rui Tavares que era um alerta e propunha medidas. Não se tendo actuado relativamente à Hungria, não nos podemos espantar se outros países escolhem o mesmo percurso. Não estaríamos na situação em que estivemos no último ano em relação à Polónia se tivesse havido a actuação relativamente à Hungria. E a outros desvios em diversos Estados membros sob variados pretextos, na discriminação das minorias ciganas em certos países do Leste europeu à actuação face aos refugiados.

Quais os efeitos práticos da aplicação do artigo 7º do Tratado de Lisboa? Se não os tiver, o que acontece?
Em relação à Polónia já os teve e no bom sentido, Varsóvia acaba de rever as medidas que punham em causa a independência dos juízes, porque teve a ameaça clara do início de um procedimento da Comissão. A Hungria é um caso mais complicado, até hoje o Conselho e a Comissão não tomaram decisões, o que tem a ver com a protecção política que Orbán tem de parte da sua família política, do PPE [Partido Popular Europeu]. No Parlamento há deputados do PPE que têm visto o perigo de fecharem os olhos, mas há sectores do PPE da Europa central que o defendem. Isto tem a ver com protecção política mas também com interesses de negócios. Há muita gente que Orbán enredou na sua teia de negócios.

Também a Dinamarca quer enviar imigrantes indesejados para uma ilha isolada…
Comecei a trabalhar neste último mandato na área de Direitos, Liberdades, Justiça e Assuntos Internos por me ter dado conta de que as questões dos Direitos Humanos se iam pôr relativamente à imigração e aos refugiados. Se a UE põe os direitos fundamentais em causa quando tratamos dos mais vulneráveis, os migrantes e os refugiados, apesar de estes terem os seus direitos reconhecidos pela Convenção das Nações Unidas sobre os Refugiados criada após a IIª Guerra Mundial, então tudo está comprometido. Interpelei membros da Comissão e responsáveis do Conselho que propuseram medidas cada vez mais afastadas do que devia ser uma posição coerente segundo os nossos princípios de defesa dos Direitos Humanos.

Na sua família política, o Partido Socialista Europeu (PSE), há laxismo? Lembro-me do governo socialista de Malta.
A família política a que pertenço não ficou incólume à contaminação. Muitos dos partidos que integram a minha família política estão no poder em alguns países da Europa central e assumiram o discurso radical à margem dos valores fundamentais. Dei-me conta disso na Eslováquia, quando havia um ministro dos Negócios Estrangeiros, que depois veio a ser presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, que a propósito de refugiados e imigrantes teve a lata de um discurso desrespeitador, o mesmo que ouvi de pessoas da presidência eslovaca relativamente à minoria cigana. Apesar de tudo, no que toca a refugiados e migrantes, a família política mais coerente na defesa dos seus direitos tem sido a minha. Não obstante, Malta é um desses casos negativos, ainda esta semana recusou a entrada de barcos com migrantes. Em Malta não é posto em causa formalmente o Estado de Direito ou a administração da Justiça, mas esses direitos estão ser violados como se viu nos Panama Papers, com dois ministros em funções, com o assassinato da jornalista [Daphne Caruana] que denunciou o caso, e com o processo de investigação parado. Isto está a ocorrer na nossa família política e é lamentável que se tenha a mesma acção que o PPE face a Orbán, segundo o princípio “é o nosso estupor, mas protegemos o nosso estupor”.

Tal igualiza o mainstream político na Europa.
Acho dramático, mas a UE faz a diferença para o resto do mundo, é vista como uma experiência de paz, progresso civilizacional e defesa dos Direitos Humanos. Numa visita ao Paquistão recebi críticas ao uso de drones para assassinatos selectivos, reconheci a existência do problema mas disse que no parlamento Europeu tinha defendido uma resolução contra o uso de drones para fins militares. Há toda uma acção do Parlamento Europeu que não é visível para o comum dos cidadãos, que é muito importante e muito valorizada pelos que são objecto dessa acção. Nesse trabalho, o Parlamento Europeu tem um papel indispensável.

Os programas de ajuda da UE têm em consideração as boas práticas nos Direitos Humanos dos países?
Os programas de ajuda pública ao desenvolvimento são outro problema. Estive dez anos nessa comissão que deixei porque me desencantei. Quando entrei, acreditei que os princípios norteadores da ajuda plasmados nos objectivos do desenvolvimento do milénio eram positivos, depois afinados com os objectivos do desenvolvimento sustentável após 2015. Mas a prática é diferente ao nível da própria Comissão mas, também, dos Estados membros. Boa parte destes, Portugal é um caso, não cumpre os objectivos de 0,7% do PIB para a ajuda ao desenvolvimento, nem cumpre o tipo de ajuda desligada, capitação de mulheres, da sociedade civil, etc. No caso português e nos outros Estados está intimamente ligada a interesses económicos.

Ao nível da UE, embora boa parte do financiamento permita a organizações, como as portuguesas, fazer um trabalho útil designadamente em África, a comissão deixou-se ficar completamente prisioneira de interesses políticos e de negócios. Vi isso na Etiópia, em 2005, quando presidi a missão para as eleições: o povo estava preparado, queria eleições justas e livres, votou massivamente, mas as eleições foram roubadas por um regime sinistro. Um sector da comissão, o dos Direitos Humanos, apoiou-me; o sector do desenvolvimento formalmente apoiou-me, mas na prática fez tudo para contrariar. É quando aparece a indústria do desenvolvimento, uma forma perversa e descredibilizadora do que deve ser a actuação da UE em matéria de desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem boa governação, não há boa governação sem respeito pelos Direitos Humanos, sem capacitação das mulheres, da sociedade civil, sem imprensa livre…

A ajuda ao desenvolvimento em vez de ser canalizada para o apoio orçamental, que fica na discrição do governo do país que o recebe, devia ser ligada a progressos nos Direitos Humanos, em direitos das mulheres, de educação, de todos os indicativos do desenvolvimento sustentável. Se a vontade política é dar dinheiro a regimes corruptos e cleptocratas para oprimirem ainda mais o seu povo, o resultado é desastroso. Por exemplo, em Angola, em 2012, achei inacreditável que o dr. Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, tenha dito o que na altura convinha ao regime de Eduardo dos Santos: que Angola não precisava de observação eleitoral porque era uma democracia estável, madura. Que um presidente da Comissão tenha disto isto de um país com as características de Angola em 2012 é automaticamente descredibilizar a UE.

Quais são as zonas que menos respeitam os Direitos Humanos, ou a mancha abrange várias áreas?
Não há uma zona perfeita, trata-se de ter o mesmo grau de exigência em relação a todos, seja na Europa ou em África. A atitude certa é considerarmos que não há ninguém perfeito. Hoje na Europa vivemos o retrocesso dos Direitos Humanos que não é indiferente ao que se está a passar nos Estados Unidos com a administração Trump. Também não vejo os Direitos Humanos restritos aos direitos civis e políticos, os económicos, sociais e culturais são essenciais. É preciso uma visão holística, há zonas em que certos direitos sociais são mais respeitados, a mancha é mesclada a nível global. Mas, sobretudo, não devemos ter a ideia errada de falar de alto quando temos aqui [na Europa] problemas.

Como vê após as próximas eleições, o Parlamento Europeu cheio de eurocépticos, críticos da Europa e populistas?
Estou muito apreensiva. Vejo o próximo Parlamento Europeu muito fragmentado, quando funcionou sempre com fortes famílias políticas que, apesar das diferenças, fizeram consensos e compromissos. Era o main stream dos princípios europeus. É isto que pode estar em risco. O populismo, do qual muitas forças políticas main stream acabaram por ir a reboque pelas receitas neoliberais da crise de 2008, pode levar-nos a uma fragmentação do Parlamento. Como boa parte são forças antieuropeias, o consenso é, ainda, mais difícil. Por isso vai ser importante o trabalho que podemos fazer de fora, de explicar, denunciar, contrariar e alertar as opiniões públicas.

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