Lars von Trier: “Tudo o que pode ser pensado deve ser filmado”

Lars von Trier, que no novo The House that Jack Built volta a conduzir o seu cinema pelos caminhos da violência gráfica e da tortuosidade psicológica, gosta de se ver como “o cineasta que faz os filmes que estão em falta”, com o objectivo de “enriquecer o género” — no caso do novo título, o género do filme de serial killers.

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Enviámos, via e-mail, oito perguntas a Lars von Trier, a propósito de The House that Jack Built, que esta semana chega às salas, e de alguns aspectos especialmente polémicos, mas cruciais, do seu cinema. Menos uma “entrevista” (que pressupõe um diálogo) do que um “questionário”, as respostas de von Trier tocam com certa clareza alguns dados essenciais ao seu credo de cineasta — da renitência ao contacto com o cinema contemporâneo (tenta não ver “filmes novos”) à convicção de que pouco deve ser deixado à imaginação do espectador: “Sei bem que algumas pessoas pensam que é mais delicado insinuar, mas eu não concordo com isso.” Aqui fica o registo da troca, à distância, de perguntas e respostas.

O protagonista de The House that Jack Built é, claro, um serial killer. Mas também é, por mais retorcido que seja, um “artista”. É justo dizer que neste filme, por mais exaustivamente que tenha investigado a psicologia dos serial killers, o seu tema principal é a psicologia dum artista?
Eu desejava que fosse uma mistura desses dois (o artista e o serial killer).

O equilíbrio entre criação e destruição parece estar no fulcro do filme, sugerindo que há elementos de destruição em todo o gesto criativo, tal como todo o gesto destrutivo pode envolver um elemento de criação. É uma visão acertada?
Penso que é uma análise muito clara.

Há um momento, perto do final do filme, em que inclui uma rápida sequência de fragmentos de vários dos seus filmes anteriores. É a primeira vez que se “auto-cita”, não é? Em que medida se “projecta” a si mesmo na sua obra em geral, e neste filme especificamente?
Sim, é verdade, mas a razão foi económica. Queria pôr excertos dos meus filmes preferidos, os que vi na minha juventude, mas isso veio a revelar-se extremamente caro. Assim, acabei por recorrer aos meus próprios filmes, porque tenho os direitos deles. Quanto à segunda pergunta, gosto de me ver como o realizador que faz os filmes que estão em falta. Um filme como The House That Jack Built é feito na intenção de cobrir um buraco vazio dentro do género. Se fui bem sucedido ou não é algo que deixarei outros decidir.

Parece encontrar o seu “combustível” criativo em muitas fontes diferentes, que neste caso vão de Dante a algo muito “século XX”, a mitologia que rodeia os serial killers. Como é normalmente o processo? Tem uma ideia para um filme e depois vai “estudar” com essa ideia em mente, ou é a ideia que deriva de um livro ou de um quadro, ou do que quer que seja que tenha atraído a sua atenção? 
Na maior parte das vezes o ponto de partida é um género, e é o género que me inspira. Mas como também aprecio abordagens retorcidas, o próprio ataque ao género é feito de modo intencionalmente retorcido. Ou é esta, pelo menos, a minha ambição. Basicamente, a ideia é enriquecer o género.

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Realizadores preferidos de Lars von Trier: Scorsese, Tarkovski, Coppola, Marguerite Duras, Carl Th. Dreyer, Bergman Matthias Nareyek/Getty Images

Há muitas cenas horripilantes no filme e a abjecção é algo que já cortejou muitas vezes. Como é que decide o que tem que ser mostrado e o que deve ser deixado à imaginação do espectador?
Sei bem que algumas pessoas pensam que é mais delicado insinuar, mas eu não concordo com isso. Por princípio, acredito que tudo o que pode ser pensado pode ser filmado e deve ser filmado. Se nos limitarmos ou restringirmos — por exemplo, por causa da correcção política —, reduziremos a liberdade de expressão, que para mim é de enorme importância.

Matt Dillon talvez não fosse a escolha mais óbvia para o protagonista, mas acaba por ser bastante bom. Como é que o escolheu e porquê? E já agora, visto que trabalha frequentemente com vedetas hollywoodianas de primeira grandeza, costuma explorar o facto de esses actores e actrizes estarem longe do seu “habitat” natural ou, pelo contrário, tenta fazê-los sentir tão “em casa” quanto possível?
O Matt Dillon veio, primeiro que tudo, porque ele queria muito trabalhar connosco, e quando digo “trabalhar” quero dizer “jogar” connosco, que é essencial para qualquer realizador. Uso uma técnica simples durante a rodagem, que deixa os actores quase completamente livres. Não nos deixamos limitar pela continuidade e pelas regras do eixo, e com isso tentamos conseguir um material tão diferente e variado quanto possível, que depois, mais tarde, na mesa de montagem, nos dá a possibilidade de o estruturar sem medo de mudanças psicológicas — já para nem dizer de contradições. O objectivo é sempre uma espécie de realismo cinemático, com que sonhavam quer os neo-realistas em Itália quer os realizadores das vagas mais novas em França e na Alemanha.

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Matt Dillon talvez não fosse a escolha mais óbvia para o protagonista, mas acaba por ser bastante bom no papel

É um “cinéfilo”, vê filmes frequentemente? Se sim (e mesmo que não), quais são os seus favoritos, de que é que gosta mais no cinema?
Por princípio não vejo filmes mais recentes do que aqueles que vi quando estudei cinema na universidade ou na Escola de Cinema da Dinamarca — para manter o palato limpo, por assim dizer. Encontrei o meu caminho de cineasta quando era muito novo. Um caminho que tinha que ser formado pelo meu “repertório” (os filmes que tinha visto). O risco de me entusiasmar com novas tendências é algo a que tenho resistido, obrigando-me a não ver filmes novos. Mas quanto aos meus realizadores favoritos, a resposta típica seria: Scorsese, Tarkovski, Coppola, Marguerite Duras, Carl Th. Dreyer, Bergman, etc. E os filmes deles, claro.

Quase não há artigo sobre si que não lhe chame um “provocador”. Como lida com essa reputação? E se realmente se considera um “provocador”, o que é que, exactamente, procura “provocar”?
Não gosto muito do termo “provocador”, porque sabe a provocação pela provocação. O meu estilo funda-se na ausência de “batota”, o que quer dizer que se devem conduzir os pensamentos e o cinema tão longe quanto possível. Esta, para mim, é uma função muito mais importante do que a provocação. Mas, no que toca à provocação, até gostaria que houvesse mais no mundo cinemático à minha volta. Mas talvez esteja enganado, porque como disse vejo um mínimo absoluto de filmes novos. Já os filmes antigos, vejo-os e revejo-os. Vi O Espelho (Tarkovski) umas vinte ou trinta vezes, e delicio-me sempre, por causa dos elementos daquilo a que algumas pessoas chamariam “provocação” e outras diriam ser um desenvolvimento da linguagem fílmica.

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