Eu vi o futuro e é jovem

O cenário é duro. Sinto-o de cada vez que olho para o futuro e o vejo tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma enorme esperança.

Hoje mais de 1,8 mil milhões de pessoas no mundo são jovens.

São milhões de vozes, de agentes que apoiados com os investimentos necessários em saúde, educação, emprego e participação podem transformar o mundo.

Todos os dias acordo consciente deste enorme potencial e desafio. Trabalhando há quase 2 anos para o Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), a agência da ONU para a saúde sexual e reprodutiva, cuja missão é garantir direitos e escolhas para todas as pessoas, foco-me especialmente nas mulheres, nas adolescentes e nos jovens. Se queremos um mundo com mais liberdade e dignidade para todos, sem deixar ninguém para trás – o mantra dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - temos que chegar primeiro àqueles que têm sido deixados mais para trás e esses são sempre as mulheres e os jovens. Frequentemente sem voz e sem um lugar à mesa da tomada de decisão, as suas necessidades e potencialidades têm sido ignoradas quer nos grandes compromissos políticos internacionais, quer na tradução destes para programas que visam, precisamente, transformar a vida de jovens e mulheres.

Mas deixem-me traçar-vos um breve e incompleto cenário dos desafios que os jovens enfrentam.

Sabemos que, todos os dias, nos países em desenvolvimento, cerca de 20.000 raparigas com menos de 18 anos dão à luz e que a maior parte destas gravidezes não resultam de uma escolha deliberada. Para muitas é a consequência de pouco ou nenhum acesso à escola, informação ou cuidados de saúde. Uma rapariga que não tem acesso a educação sexual compreensiva e a saúde sexual e reprodutiva não consegue evitar uma gravidez indesejada, por exemplo, e o impacto desta falta de escolha na sua saúde, educação e autonomia constitui um conjunto de violações dos seus direitos fundamentais. Uma adolescente que não tem controlo sobre o seu corpo, não tem controlo sobre nada na sua vida. Fica mais exposta à pobreza, à dependência, ao abandono escolar e ausente dos espaços onde a sua vida é decidida.

Se pensarem que todos os dias morrem 800 mulheres e jovens de causas ligadas à gravidez, parto e pós-parto, na sua maioria preveníveis, pensem no impacto transformador que garantir acesso à saúde sexual e reprodutiva e direitos conexos pode ter na vida destas pessoas, no desenvolvimento dos seus países e do mundo.

Todos os anos milhões de raparigas casam precocemente e antes de atingir a idade adulta. O casamento precoce, infantil e forçado é uma violação dos Direitos Humanos. E apesar de todas as leis que o punem, globalmente, uma em cada 5 raparigas casa-se, ou entra para uma união, antes de atingir os 18 anos. São quase 12 milhões todos os anos. O casamento infantil viola o direito de escolher se e com quem casar. E quando as raparigas têm escolha, casam-se mais tarde. Um jovem casado precocemente corre maiores riscos de abandono escolar, de uma gravidez indesejada (as complicações decorrentes da gravidez adolescente são a principal causa de morte entre raparigas adolescentes mais velhas) ou de contrair uma infecção sexualmente transmissível.

Por todo o mundo há hoje cerca de 200 milhões de mulheres e raparigas que vivem com as consequências de mutilação genital feminina; e, de acordo com as nossas estimativas, até 2030 há cerca de 68 milhões de meninas, raparigas e mulheres em risco.

A mutilação genital feminina é umas das mais graves violações dos Direitos Humanos. A despeito de todos os sucessos com a criminalização da prática, das declarações públicas de abandono e de uma quase consciência universal para a gravidade do acto e das violações de direitos que aporta, o trabalho está longe de estar terminado.

E posso vos falar ainda dos contextos humanitários e de como todas as violações de direitos que possam imaginar são exacerbadas e exponencializadas e de como os jovens eram reduzidos a sobreviventes e portadores de necessidades – que o são – mas nunca reconhecidos como agentes de resposta de primeira linha, como actores na construção de sociedades resilientes.

Ou, ainda, de como nas negociações para a paz e segurança o elo que faltava era os jovens, a sua voz, as suas redes, a sua capacidade de inovar em soluções e em parcerias transformadoras, que ocupassem o seu lugar à mesa.

Bem sei que o cenário é duro. Sinto-o de cada vez que olho para o futuro e o vejo tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma enorme esperança. Primeiro porque vemos, ouvimos e lemos e não o podemos ignorar, como tão bem o dizia a nossa Sophia; depois porque os jovens dizem alto e a bom som “nada sobre nós, sem nós” e, como exige a enviada especial para a juventude do Secretário-Geral da ONU, se os jovens não cabem na mesa de negociações, construam mesas maiores; e também porque investir nos jovens, na sua saúde sexual e reprodutiva, nos seus direitos sexuais e reprodutivos, na sua educação/formação, no seu emprego e na sua participação não é apenas algo que possamos fazer, é a coisa certa a fazer, se realmente não queremos deixar ninguém para trás.

O meu optimismo, sempre informado, vem sobretudo do trabalho notável que organizações internacionais, Estados e sociedade civil – em parcerias com a academia e a comunicação social – têm feito, por exemplo, em recolher dados desagregados ao género e à idade, que usam para desenhar políticas e programas com impacto; vem dos enormes compromissos que todos temos sabido gizar e proteger; vem do reconhecimento de cada um de nós como portador de deveres e de direitos.

E é isso que agências como aquela a que eu tenho o privilégio de pertencer fazem diariamente: conhecer para agir, inovar para transformar a vida dos Povos das Nações Unidas, como tão inspiradoramente somos referidos na abertura da Carta das Nações Unidas.

2019 é um ano de charneira. É o ano dos 25 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que muda o papel percebido das pessoas no desenvolvimento: de números humanos para Direitos Humanos, celebrando os direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos, colocando jovens e mulheres no centro do desenvolvimento. E foi já há 25 anos, é tempo de cumprir as promessas desta agenda perpétua.

O UNFPA, que tem como missão construir um mundo em que cada gravidez é desejada, cada parto é seguro e o potencial de cada jovem é realizado, celebra 50 anos. 50 anos a colocar os jovens no centro dos processos, de todos os processos, incluindo na construção da paz e da segurança e na ação humanitária, empoderando-os, trabalhando com eles e para eles, fazendo de cada espaço um espaço seguro e de autonomia, dando aos jovens as competências, a informação, o poder e os meios para decidirem sobre os seus corpos, as suas vidas, as suas famílias, comunidades, países e o mundo.

Por isso quando olho para o futuro ele é jovem. É feito das vozes e da acção de 1,8 mil milhões de jovens e de todos os que lutam ao seu lado pela reconhecimento dessa extraordinária força transformadora, dos que aliam a esse reconhecimento um investimento na sua saúde, educação, emprego e participação, dos que combatem as tentativas de encurtamento desse espaço, dos que dizem “nada sobre os jovens, sem os jovens.” Porque sabem que mais, afinal o presente já é jovem.

Directora do escritório do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População em Genebra

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