2019 e um ser humano novo

Um sacana não se transforma num exemplo de mansidão, excepto se algo de profundamente traumático o atacar de frente. E, sendo um cliché, sabemos todos que, a partir de certa idade, ninguém muda ninguém.

Was he free? Was he happy? The question is absurd: / Had anything been wrong, we should certainly have heard. (W. H. Auden, poeta inglês modernista, 1907-1973).

Os versos finais do conhecido poema de Auden, The unknown citizen, reflectem com mestria o equilíbrio único entre as grandes verdades, o humor, o uso do vernáculo e uma singular ligação às massas populares que este escritor nunca perdeu.

Lembrei-me dele ao responder, em gesto quase mecânico, a muitos dos agradecimentos de bom ano, acompanhados de algo como “as maiores venturas pessoais e profissionais em 2019” ou, para encurtar, “tudo de bom para o novo ano”. Claro que não será tudo bom e haverá dias maus e outros mesmo muito maus, péssimos, horríveis, daqueles que ninguém merece, até mesmo a pior pessoa do mundo. Wishful thinking? A velha ideia do optimista que atrai boas energias e ciências ocultas quejandas? Uma espécie de Professor “Bambo Leite” que está aprisionado em mim? Nada disso. A ideia de um “ser humano novo”.

A História do ser humano é a da sua constante crítica e propostas de melhoramento. Parece que, para quem acredite, Deus estava desinspirado e deitou ao mundo produto com defeito, que viria a dar origem a tantos hodiernos produtos com prazo de validade implícito, sendo que na noção de “produtos” vão também coisas mais emocionais como as relações de amizade ou de amor. A intemporalidade ou, pelo menos, a perenidade, não combina com o tempo que nos tocou viver. Talvez depois de ter lido Assim falou Zaratustra, de me familiarizar com o conceito de “super-homem” (Übermensch), de Nietzshe, ou A Utopia, de Thomas More, deixei de fazer resoluções de ano novo. De pouco ou nada servem, excepto para, em finais de Janeiro, inícios de Fevereiro, corrermos o risco de cair em depressão por incumprimento do contrato celebrado connosco próprio. Não há inadimplemento mais doloroso. E porquê isto? Aspiramos a que, num segundo que separa o último dia do ano velho e abre o novo, o divino espírito nos abra a cabeça e o coração e nos infunda uma sabedoria infinda, uma inteligência, bondade, paciência, vontade de ir ao ginásio, capacidade de lidar com os problemas, um relacionamento amoroso ou o seu fim. Mesmo que o espírito seja divino, é pedir muito. Afinal, os poderes da santidade também conhecem limites.

Não há ser humano novo. Entendamo-nos: sei que podemos modelar e modificar alguns traços de personalidade, formas de reagir a situações quotidianas que gerimos com dificuldade. Se assim não fosse, não acreditaria em todas as ciências psicológicas e consideraria que não há capacidade de o ser humano se renovar. Mas tudo isto até certo ponto. Um sacana não se transforma num exemplo de mansidão, excepto se algo de profundamente traumático (para o bem ou para o mal) o atacar de frente. E, sendo um cliché (logo, uma verdade estatisticamente comprovada, como regra), sabemos todos, por experiência própria, que, a partir de certa idade, ninguém muda ninguém. O perfume que caracteriza aquela pessoa – doce ou amargo – lá ficará sempre, embora possa, aqui e além, ser almiscarado com desideratos instrumentais-estratégicos.

Motivos para não festejarmos o novo ano? Não me podia ter explicado pior, eventuais leitores. Claro que devemos celebrar, desde logo o dom da vida, mesmo que na doença ou em outras tribulações, mas sempre com os pés bem fincados na terra. Não consta que um realismo chão tenha alguma vez feito mal a alguém. Pelo menos nunca o vi escrito em qualquer certidão de óbito.

E sonhar “XXL”? Porque não? Desde que estejamos preparados para uma realidade “S” ou “XS” e tenhamos por seguro que várias coisas serão boas, outras assim-assim e outras más, no novo ano.

Como sempre foi, aliás, com os nossos companheiros de viagem de há mais de 2000 anos. A mudança está nas acções concretas em cada segundo vivido em 2019 e não nas muito articuladas pias intenções que deixámos em 2018. Para já não falar na batota que é formular intenções num ano que não voltará jamais para nos cobrar o que, efectivamente, cumprimos.

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