Fernanda, Susana, Paula e tantas outras professoras

A professora Paula anda como a mulher do arame. Quase que cai. Equilibra-se e volta a desequilibrar-se. Aguenta. Grita. E às nove da manhã ali está, de sorriso aberto.

Chovia e a manhã estava fria. Rosa veio à escola. Rosa era assim. Aparecia e depois desaparecia. Dizia-se que preferia amanhar a terra do que as letras. Vinha bonita. Vestido às flores e botas altas. Rosa vinha tímida. Com vergonha. Sentou-se no lugar que sempre a esperou. A professora Fernanda chamou-a ao estrado. Perguntou-lhe porque não vinha à escola. Rosa encolheu-se de medo. A mesma pergunta foi repetida vezes sem conta e o som grave aumentava a cada ponto de interrogação. Rosa não respondia. E a professora Fernanda com a régua em riste levantou o vestido florido de Rosa. E bateu-lhe. Bateu-lhe imenso. E a sala com as carteiras em fila era uma plateia de crianças assustadas. Rosa chorou. E Rosa nunca mais voltou. Ficou com a 3.ª classe por fazer. Para sempre.

Nunca mais vi a Rosa. A cadeira continuou vazia. Ninguém se importou. Nem a professora Fernanda. Naquela escola, a escola-modelo do ministro Veiga Simão, as turmas eram mistas. Rapazes e raparigas eram só separados na hora da brincadeira. Um muro alto dividia o recreio em dois. De um lado, as balizas, do outro, o lencinho. Tínhamos tabelas de basquetebol mas nunca foram estreadas. Tínhamos um globo, paralelepípedos alinhados, planisférios enrolados, desenhos do corpo humano, tudo dentro de um armário verde e envidraçado. Tudo guardado para não se estragar. Para não se mexer. Como bibelots na sala de jantar.

Foto
Adriano Miranda

Por cima do quadro, um Cristo sofrido. Sem Caetano nem Tomás. Só Cristo. Na sala desenhada a régua e esquadro, existiam cinco filas de mesas modernas. A professora Fernanda sentava-se na sua secretária num estrado largo. Livros, régua, cana e rebuçados para distribuir aos melhores. Num dos cantos, a fila mais temida, a fila dos burros. A vergonha. Os meninos e as meninas que tinham mais dificuldades eram encostados ali. Quase esquecidos. Os que nunca recebiam rebuçados.

A professora Fernanda era amiga. Chegava todos os dias no seu Toyota Corolla branco. E nós fazíamos uma festa. Gostávamos da escola. Depois de os militares invadirem as ruas e o director da escola mandar derrubar o muro do recreio, a professora Fernanda deixou de usar a régua, acabou com a fila da vergonha e deu a volta ao mundo connosco no globo que cheirava a mofo.

Durante anos via a professora Fernanda. Fazíamos uma festa um ao outro. Tínhamos admiração. Agora deixei de a ver. A minha professora...

A professora Susana não queria escolas fáceis. No concurso anual de colocação de professores, ficava contente se lhe calhava na “rifa” uma escola numa aldeia distante. Assim acontecia. E a professora Susana não ensinava só as crianças. À noite, depois da ceia, ensinava também os pais das crianças. Amava o que fazia. Era uma missão. Construir um mundo um pouco melhor. Mesmo naquela aldeia emparedada entre montes. Um dia, o concurso de colocações enviou a professora Susana para junto do mar. Os pais revoltaram-se. Queriam a professora Susana. A despedida foi dolorosa.

Junto ao mar, a escola era de meninos pobres. Meninos de fome. A professora Susana construiu uma cantina. Pequeno-almoço, almoço e lanche. Antes de juntar as letras, juntava o pão, o leite e o queijo. O arroz, a carne, o peixe e a laranja. Depois conjugavam os verbos, visitavam os barcos dos pais, desenhavam a liberdade, cantavam canções de embalar. Depois a noite. Os meninos e as meninas deitavam-se sem histórias contadas em voz grossa. Mas tinham a professora Susana que os fazia sonhar. Depois a manhã. E a professora Susana outra vez. Que bom.

Mas houve uma manhã em que a professora Susana não apareceu. Ficou doente. Muito doente. A professora Susana era magra. Frágil. Calma. Mas no meio da aparente fragilidade estava uma mulher cheia de força e determinação. Uma professora de coração cheio. Uma professora que amava os seus alunos, os pais, os avós, o mundo. A professora Susana não aguentou e sorriu pela última vez. Em fila, um a um, os meninos e as meninas da professora Susana deixaram um desenho, uma flor, num adeus de ternura.

Ficou na escola de meninos pobres à beira-mar uma placa de mármore gravada a letras negras: Obrigado, professora Susana.

A professora Paula queria ser arqueóloga. Não conseguiu. Um dia estava a dar aulas numa aldeia da serra algarvia. Apaixonou-se pelo prazer do que fazia. São anos a percorrer centenas de quilómetros por escolas grandes ou pequenas, do campo ou da cidade. Sempre com um sorriso. Sempre com dedicação extrema. Já foram tantas as crianças a quem ela afagou os cabelos, a quem ela ensinou a palavra “amizade”. Já foram tantas as vezes que a professora Paula se esforçou. Esforçou. O verbo que a professora Paula mais conjuga. Até ao limite. Até às lágrimas. Os meninos e as meninas sabem. Sentem. Sabem que a professora Paula, para além da aritmética, dos sinónimos e do nome dos continentes, é uma amiga sempre atenta. Amiga primeiro, professora depois.

Não têm sido anos fáceis. A professora Paula anda como a mulher do arame. Quase que cai. Equilibra-se e volta a desequilibrar-se. Aguenta. Grita. E às nove da manhã ali está, de sorriso aberto e franco para os seus meninos. Na sala de aulas esquece o que lhe andam a fazer há muitos e tenebrosos anos.

A professora Paula já pensou muitas vezes em desistir. E um dia vai desistir. Como ela, muitos. Excelentes professores. Excelentes profissionais. Estão cansados de tanto enxovalho.

E depois?

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