Uma legislatura longa demais para António Costa

António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela.

António Costa conseguiu um milagre no qual só mesmo ele acreditaria na noite de 4 de Outubro de 2015, após a sua inesperada derrota eleitoral: completar uma legislatura como primeiro-ministro, com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Esse facto, que muitas vezes é despachado (injustamente) como “habilidade política”, merece o meu respeito e a minha admiração. Contudo, é muito possível que o milagre de 2015 venha agora a revelar-se a maldição de 2019, se as greves continuarem a este ritmo e a degradação dos serviços públicos acelerar. A aprovação do último Orçamento do Estado, celebrada como mais uma vitória de Costa, pode muito bem ter sido menos uma vitória de Costa e mais uma vitória de Pirro, com o primeiro-ministro a acabar refém do seu próprio sucesso.

Se assim for, e se 2019 for o ano em que a esquerda comunista e bloquista se vai vingar de todos os sapos que engoliu durante a legislatura, colocando o governo que diligentemente apoiou a fritar em lume brando até Outubro, é caso para dizer: é muito bem feito, senhor primeiro-ministro. Porque se eu admiro a arte política que António Costa revelou nos últimos anos, e se continuo a considerar – como sempre considerei – que ele é o melhor quadro que o PS tem para oferecer ao país, há uma coisa que não lhe deve ser perdoada: ter assinado um pacto de governo com base numa mentira escandalosa, que fica para a História como “o virar da página da austeridade”.

Quando fazemos o balanço destes três anos, houve muitas medidas económicas que o governo tomou e com as quais não concordo, mas só uma delas posso classificar como verdadeiramente obscena – a redução do horário de trabalho de 40 para 35 horas na função pública. Essa, sim, é uma medida imperdoável. Mas, fora isso, não houve aumentos de 2,9% para a função pública em vésperas de eleições, como nos saudosos tempos de José Sócrates, nem delírios como a Parque Escolar ou o TGV. Ou seja, de um modo geral, a política adoptada por Costa e Centeno está dentro de padrões de responsabilidade financeira aceitáveis, ao contrário do que era prática comum no Partido Socialista.

Aquilo que não está dentro dos padrões aceitáveis é a formação de uma narrativa de enganos em torno do legado do governo anterior, e a demonização do trabalho de Passos Coelho, que na cabeça de muita gente perdura até hoje. Essa narrativa não é apenas injusta – ela conduz, naturalmente, ao relaxamento da sociedade portuguesa, ao regresso a uma certa inconsciência no endividamento e à adopção de um discurso de facilidades que não existem. É verdade que as acções de Costa e Centeno foram sempre mais responsáveis do que as palavras que saíam das suas bocas – só que, a partir de certa altura, o mal estava feito. Se a austeridade prejudicou tanto o país, se ela não era necessária, porque é que as pessoas não podem regressar à vida de antigamente?

Quem por palavras mata, por palavras morre. António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela. Agora, na sua mensagem de Natal, o “virar a página de austeridade” deu lugar ao “virar a página dos anos mais difíceis”. Mas já vem tarde. Avizinham-se tempos duros para o governo, e é muito possível que esta legislatura tenha dez meses a mais do que recomendaria a boa saúde política de António Costa.  

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