Flak: “Isto é uma nova fase. O passado foi lá atrás.”

Fundador dos Rádio Macau ou dos Micro Audio Waves, e produtor de Jorge Palma, eis Flak, com o seu terceiro álbum a solo, tocado pelo psicadelismo, pelo sol e pela cumplicidade com as novas gerações, simbolizada pela produção de Benjamim.

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Chama-se Morcego, a primeira canção do terceiro álbum solitário de João Pires de Campos, 57 anos, mais conhecido no universo da música por Flak, compositor, produtor e guitarrista, com longo passado atrás ligado à fundação dos Rádio Macau e depois dos Micro Audio Waves.

Diz ele que o título se deve ao facto de ser um homem nocturno. Mas na verdade Cidade Fantástica é diurno e soalheiro. Há pormenores de dissonância ambiental, que deixam entrever a sua fonte experimentalista, mas acima de tudo vislumbram-se canções pop-rock, recheadas de harmonias apuradas, acordes de uma aparente simplicidade e voz e texturas psicadélicas que nos transportam para outro universo.

É o tipo de obra que nos devolve o prazer e a fantasia que existiu na sua feitura, onde contou com a colaboração de Luís Nunes (Benjamim), que trouxe uma série de cúmplices para a apresentação em palco. No discurso e na atitude perante a realidade de Flak não existe o mínimo de nostalgia, apesar de ter escavado na memória para recuperar muitas das suas recordações da juventude, quando ainda nem sequer pensava em música.

Quando parte para um disco gosta de ter uma ideia bem definida sobre o quer fazer ou prefere não ter referências?
Não consigo partir do nada. Tenho que criar referências. Ter limites. Neste caso o desafio foi regressar às referências da minha juventude e atribuir-lhes novas leituras. Estou a falar ainda antes dos Radio Macau terem começado. Quando iniciámos o grupo vivia-se a fase da new wave ou do pós-punk. Nessa altura não se podia dizer que a aspiração era tocar bem ou ser virtuoso. Os solos de guitarra, por exemplo, não faziam parte da linguagem da época. Mas comecei a ouvir música antes: rock progressivo, os Pink Floyd, Yes ou Genesis. E muita musica psicadélica também. Algumas coisas dos Beatles, por exemplo. Ou noutra perspectiva, Bob Dylan, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso. A ideia foi ir aí a essa fonte, a tudo aquilo que estava lá para trás e que remete para esse período antes de começar a gravar discos.

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Diz ele que o título da canção Morcego se deve ao facto de ser um homem nocturno. Mas na verdade Cidade Fantástica é diurno e soalheiro Vitorino Coragem

De alguma maneira quando iniciou os Rádio Macau era como se não pudesse adoptar essas referências, porque a geração pós-punk reagia a essa corrente progressiva do rock, mas agora já o pode fazer.
Um pouco, sim. Quando comecei a comprar discos – Floyd, Dylan, Zeca ou Keith Jarrett – ouvia-se também Rolling Stones e bandas mais rock. No fim de contas era isso que conseguíamos tocar. Coisas mais sofisticadas havia alguma dificuldade. Ao mesmo tempo apareceu a Patti Smith, os Television ou os Clash, que propunham uma estética fixe e por ali já era mais consensual ir-se. Os Radio Macau vieram daí. Alias, no início, o nosso som era muito dissonante, acabando por ser um pouco limado para entrar no mercado. Em resumo, para este disco, tentei o menos possível regressar a esses anos 80, quando comecei a fazer carreira na música.

Nos últimos anos, esse período dos anos 1970, em particular a herança psicadélica, perceptível em grupos como Tame Impala ou King Gizzard & The Lizard Wizard, acabou por ser recuperada pelas novas gerações do rock. Revê-se nessas abordagens mais recentes?
Sim, embora o meu primeiro disco solitário, de 1998, já contivesse essas referências. Este álbum acaba por ser a continuação daquilo que fiz nessa altura e que interrompi porque, entretanto, os Radio Macau regressaram ao activo nesse período, ao mesmo tempo que mantinha os Micro Audio Waves e produzia para o Jorge Palma. Acabaram por ser dez anos em que estive muito ocupado, principalmente por causa dos Micro Audio Waves que acabaram por surgir em consequência dos Rádio Macau. Comecei a trabalhar com o Carlos Morgado, percebemos que nos dávamos muito bem, completávamo-nos e resolvi assumir um projecto com ele que estava para lá do que os Macau faziam.

Cidade Fantástica é sonoramente um álbum solarengo, de onde emana luz. Isso também decorre dessas referencias do psicadelismo?
Nas minhas aulas de produção musical digo aos alunos que aquela foi a fase mais importante da pop do seculo XX em vários sentidos. Foi quando se adoptou toda a tecnologia que veio do pós-guerra. Ali confluiu tudo. Toda a gente queria experimentar áreas diferentes. É isso que leva os Beatles a incorporar influências do [Karlheinz] Stockhausen, por exemplo. Foi uma época criativa. E havia dinheiro. Não é como hoje. Conseguia-se vender a música, portanto investia-se nas gravações. Nos anos 1980, quando comecei, as coisas já estavam mais controladas em termos industriais e as editoras faziam mais pressão para as bandas terem singles. Antes não. Os Yes iam para estúdio e estavam lá seis meses a experimentar. Aquilo vendia e as editoras deixavam-nos à vontade. Havia essa liberdade. E de certa forma, com características diferentes, isso está a voltar agora. Não há pressão. Antigamente alinhar em códigos mais comerciais fazia a diferença entre vender muito e quase nada. Agora não. Agora podes fazer aquilo que quiseres que a diferença não é grande.

O seu percurso não é muito linear. Sempre esteve perto de formatos da cultura pop, mas nunca se eximiu em activar ou participar em projectos mais experimentais como a Máquina de Almoço dá Pancadas, numa altura em que isso não era propriamente a norma.
Ainda há muitos músicos de jazz da actualidade que dizem ter começado a tocar por causa de projectos dos anos 1990 como a Máquina ou os Plopoplot Pot do Nuno Rebelo, com que também toquei. Aliás fizemos um concerto no São Luiz e aquilo encheu o que é fenomenal para o projecto que era. Estava lá toda a gente, do Vitor Rua ao Pedro Ayres Magalhães. Na altura aquilo foi importante. Havia ainda uma grande divisão entre as pessoas do jazz e do Hot Club e os gajos do rock. Não havia contacto. Ali conseguiu-se que houvesse esse cruzamento, à base de algumas das influências da altura, dos Lounge Lizards ao John Zorn, a Nova Iorque dessa época. Mas, sim, é verdade que sempre me posicionei nesses dois mundos. Logo à noite vou jantar com o José Ernesto da editora experimental Creative Sources. Sou capaz de tocar jazz improvisado com o Luís Lopes, o Rodrigo Amado ou o Vítor Rua, mas também não renego outras vertentes – agora até fui convidado para ser um dos compositores do festival da canção. E nunca me senti desrespeitado por causa disso. E só não faço mais música porque sou desorganizado. Gosto imenso de trabalhar com outras pessoas mas quando isso acontece já sei que tenho de me moldar um pouco à estética dos outros. Foi por isso que, agora, decidi partir para algo em que o controle estético passa sempre por mim.

O que não o impediu de convidar Luís Nunes, mais conhecido por Benjamim, para a produção do álbum e de envolver uma série de músicos mais novos nos concertos de apresentação deste mesmo disco.
É verdade. Foi o Benjamim que me apresentou uma série de músicos seus amigos, de uma geração bem mais nova que a minha, e com quem comecei a tocar. Gente de bandas novas como o José Guilherme Vasconcelos Dias, o António Vasconcelos Dias ou o João Pinheiro, que demonstra um prazer em tocar que é contagiante, ao mesmo tempo que me respeitam o meu trabalho. São pessoas com uma mentalidade fresca e na qual me revejo. Nunca operaram na indústria da música quando esta gerava lucros a sério e têm uma abertura diferente em relação à realidade. Foi isso que também vislumbrei no Benjamim. Uma vez, ao falarmos sobre música, chegámos rapidamente à conclusão que tínhamos imensas coisas em comum, mesmo em termos de funcionamento em estúdio. Por outro lado gostamos os dois imenso de música pop e de fazer canções. Somos também os dois um pouco caóticos. Passamos horas com pormenores. E o disco foi sendo feito assim. Íamos para estúdio. Criávamos qualquer coisa. Um mês depois regressávamos, ouvíamos e aquilo produzia sentido. Foi assim que operámos. E divertimo-nos à brava.

Nesse concerto do Teatro Ibérico estiveram nove pessoas em palco. Não é um espectáculo fácil em termos logísticos, o que me leva a questionar como é que alguém que passou pela fase dourada da indústria, em termos económicos, se foi adaptando a estes tempos?
Neste momento o meu objectivo é ganhar o dinheiro que me permita ir fazendo aquilo de que gosto. Se conseguir pagar as despesas, e às pessoas à minha volta, já se está bem. Não sou nada nostálgico, seja em termos materiais ou criativos. Há muita gente da minha geração que fica em casa, renegando a actualidade, mas não me parece que seja por aí. Para mim isto é uma nova fase. O passado foi lá atrás. Não me revejo na ideia de que no outro tempo é que era. Quem passa o tempo a achar que na sua época é que era, proferindo que já não há música boa, não sabe o que diz. Não há porque não procuram. Hoje em dia há mais música boa do que há vinte anos. Há mais gente a fazer musica porque a tecnologia o permite. Há mais qualidade e liberdade. Mas claro que não existe a divulgação do passado porque não há grandes estruturas.

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No discurso e na atitude perante a realidade Flak não mostra o mínimo de nostalgia, apesar de ter escavado na memória para recuperar muitas das suas recordações da juventude Vitorino Coragem

Na feitura das letras diz que os surrealistas foram uma influência. De que forma é que isso está inscrito no disco?
Em termos formais existem algumas influências da chamada escrita automática. Nas letras tento começar sempre pela fonética, mas agrada-me também essa ideia de se criarem associações que parecem algo aleatórias. A canção Imaculada concepção, por exemplo, foi feita através do encadeamento de nomes de livros. Existe esse lado contingente, mas depois acho piada quando consigo completar o texto e aquilo acaba por adquirir imensos significados. Na altura tento não pensar muito nesse processo, mas as coisas acabam sempre por adquirir sentido. A canção Morcego nasceu porque me deito sempre às quatro ou cinco da manha e tinha um vizinho que me via a passear de madrugada e chamava-me morcego. Mas é também morcego porque peguei no Transformer do Lou Reed e às tantas o Andy Warhol diz que gostaria de ser um morcego. Vou criando associações espontâneas que acabam por resultar por vezes mais interessantes do que se estivesse a racionalizar no que estou a fazer.

Quando olha para o seu trajecto do que se orgulha mais?
Depende do período. Há várias fases dos Radio Macau e também gostei de fazer a Maquina do Almoço dá Pancadas. Quando fiz o No Waves, em 2004, dos Micro Audio Waves fiquei muito entusiasmo. Ouvia aquilo e pensava: isto não se parece com nada que conheça. Era único. Ia aos sítios fazer entrevistas e sabia que tinha ali qualquer coisa de que me orgulhava. Acabou por originar a única Peel Session que existe de uma banda portuguesa, depois de o John Peel nos ter visto. Isso dá-me prazer, perceber que há pessoas que não nos conhecem de lado nenhum, que não têm visões preconcebidas e que enaltecem o trabalho. O Tony Visconti é outro exemplo. Viu um concerto e quando lhe pedi um autógrafo para assinar a trilogia de Berlim do David Bowie, escreveu: “para o Flak, um excelente guitarrista”. São coisas que parecem insignificantes, mas com significado. Não estava a ser simpático. Viu o concerto, partilhou com pessoas que tinha gostado muito, alegando que eu tinha uma boa linguagem a tocar. E isso, naturalmente, deixa-me satisfeito.

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