A geração da distopia

Não gostando do que vê à volta, disso Pepetela vem dando conta de modo crescentemente satírico.

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Nunca, como neste livro, foi Pepetela tão sarcástico, tão escarnecedor e tão cáustico NUNO FERREIRA SANTOS

Literariamente, a morte sempre foi um bom lugar de onde observar a vida. A vida própria e a alheia. Quase sempre com efeitos cómicos e críticos devastadores, como nos seminais (sem ironia) Diálogos dos Mortos, de Luciano (século II). Em língua portuguesa, o modelo foi estampado e registado sem imitação possível por Machado de Assis, com as Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). O que não quer dizer que o produtivo filão se tenha esgotado aí. Muito recentemente, em O Fiel Defunto, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida também matou logo no início o protagonista do romance, sem dúvida para mais livremente satirizar os usos e costumes político-literatos nas ilhas (e não só).

O protagonista e narrador de Sua Excelência, de Corpo Presente, o novo romance de Pepetela (n. Benguela, 1941), encontra-se igualmente morto desde o início do livro. E dessa condição não escapará no final do romance, que a ficção não pode tudo (informação que adiantamos para benefício dos leitores mais supersticiosos). Sua Excelência está morta, mas não enterrada: “Estou morto. […] estou deitado dentro de um caixão, num salão cheio de flores, as quais, em vida, me fariam espirrar.” (p. 9) Nem tudo é mau, na morte. A posição é confortável, mas restringe um tanto o campo de visão (chamemos-lhe assim) do morto, que disso lavrará adiante conformado protesto. Mero pormenor que não impede o defunto, consumado ditador absoluto de um país africano não nomeado, de nos relatar as danças de cadeiras que já se preparam no palácio presidencial, replicando aquelas que no passado o levaram ao poder e que eram já réplicas de outras que… Enfim, e como tão bem sabemos, nunca um elo se perdeu na infindável cadeia de indignidades, traições, falta de escrúpulos e outros crimes, a que habitualmente chamamos História.

Depois de, em Mayombe e A Geração da Utopia, haver contado o tempo heróico das lutas independentistas, a ficção de Pepetela há muito que começou a olhar para o “presente” à sua volta e, não gostando do que via e vê, disso vem dando conta de um modo crescentemente satírico. Mas creio que nunca, como neste livro, foi o autor tão sarcástico, tão escarnecedor e tão cáustico. Nada parece capaz de redimir o desencanto desta narrativa, na qual até mesmo a rara virtude (de certo ministro, de uma filha do ditador) se torna perigosa e contraproducente: “Só Isilda mesmo para me enrascar com sua honestidade. [...] Todos perdem quando querem dar lições de integridade […].” (p. 198) A tal ponto que chegamos mesmo, por vezes, a simpatizar com a cínica honestidade do defunto protagonista — “Subir tão depressa na hierarquia com tão poucos feitos até me dava vertigens.” (p. 208) —, quando a medimos pelo contexto: um país de recorrentes guerras civis, vampirizado pelo nepotismo de uma elite político-militar predatória, corrupta até à náusea e ostensivamente incompetente e prepotente. “Um bando de chupistas” — resume o ditador defunto deitado no seu caixão, diante do qual desfilam poderosos e ‘populares’ numa simétrica farsa de enganos: “[…] entre os presentes, quem não mete bens do Estado no bolso? Só as crianças, inocentes. Por enquanto. Basta crescerem um pouco…” (p. 18).

O morto vai intercalando na narrativa observações e comentários sobre as circunstâncias e os circunstantes com a rememoração da sua inesperada e parabólica ascensão desde a base até ao vértice da ‘pirâmide’ social, método que bem se apresta a ilustrar como se fabricam — à medida das ‘necessidades históricas’, dir-se-á — biografias de ‘heróis nacionais’ e de ‘salvadores de pátrias’. A imagem final, com o caixão soterrado numa monumental lixeira a céu aberto e às portas do palácio presidencial na capital do país, além de nos proporcionar um aceleramento burlesco da narração, consegue ainda ser a metáfora mais adequada à distopia viva do presente. Em África e em outras partes.

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