Se isto é amar o SNS vou ali e já volto

O Governo adora encher a boca com o SNS, mas está a impedir centenas de doentes de terem acesso às melhores terapêuticas disponíveis.

A notícia surgiu no Jornal de Notícias de 23 de Dezembro, e no meio das prendas e do peru não teve com certeza a atenção que merecia. Dizia assim: “Travão a fundo nos medicamentos inovadores. Negas para usar novos fármacos disparam 300%. Infarmed indeferiu 391 pedidos de autorização de utilização excepcional feitos pelos hospitais de Janeiro a Outubro. Ex-ministro denuncia bloqueio no acesso dos doentes à inovação.”

O ex-ministro que a notícia refere é Fernando Leal da Costa, que tem escrito bastante sobre o tema – o governo adora encher a boca com o SNS, mas neste momento está a impedir centenas de doentes de terem acesso às melhores terapêuticas disponíveis, coisa nunca antes vista. A 21 de Dezembro, já Leal da Costa havia escrito um artigo de opinião particularmente duro aqui no PÚBLICO, intitulado “Vergonha”, onde afirmava que desde o final do Verão o Infarmed “passou a recusar quase todos os tratamentos inovadores que poderiam ser usados em oncologia”. E dizia mais: “A vergonha é tão grande quanto essas recusas se baseiam em pareceres de supostos peritos médicos, manifestamente desconhecedores da melhor prática, escritos com erros técnicos grosseiros, escondidos a coberto de anonimato e condenando ao sofrimento pessoas para quem nunca olharam. Tenho vergonha por saber que há colegas que se prestam a tão sujo serviço, o de negar tratamento, argumentando com economias que não deviam ser as suas, violando o seu sagrado dever de tudo fazer para assegurar que ninguém pode ficar sem o direito ao tratamento de que precisa.”

O que se passa é isto: qualquer medicamento demora muito tempo (dois anos, em média) a ser adoptado pelos hospitais do SNS. É preciso avaliar a sua segurança e eficácia, e depois é ainda necessário discutir o preço com a farmacêutica que o produz. No entanto, em áreas de ponta, como a oncologia, o progresso médico faz-se a uma velocidade espantosa – há novos medicamentos a serem permanentemente introduzidos, e muitos deles são, para um doente, a diferença entre a vida e a morte. Essa velocidade não é compaginável com os timings de aprovação dos medicamentos, e para ultrapassar esse bloqueio existe a Autorização de Utilização Especial (AUE), um mecanismo que permite o uso pontual, doente a doente, de medicamentos que ainda não foram adoptados pelo SNS.

É este mecanismo que tem estado a ser estrangulado pelo Infarmed, segundo Leal da Costa, e segundo os números avançados pelo Jornal de Notícias, que lhe dão inteira razão. Se o número de pedidos indeferidos de AUE subiu de 96 em 2017 para 391 em 2018, isto não pode ser um mero desvio estatístico – tem de corresponder a uma nova política do Infarmed. Pode certamente questionar-se até que ponto essa política é aceitável, na medida em que a dívida do sector é gigantesca e os preços dos medicamentos inovadores atingem valores absurdos – as farmacêuticas abusam dos preços para os medicamentos serem rapidamente introduzidos no SNS; o Infarmed trava as AUE para os preços baixarem. Convinha apenas que neste jogo do gato e do rato quem acabasse por ser comido não fosse o doente. Ora, é isso que está a acontecer, e com a falta de transparência do costume: ninguém esclarece se há novas regras de aprovação das AUE e as decisões do Infarmed não são sequer sindicáveis. O problema não é só a escassez de recursos – é, mais uma vez, a forma como os cortes mais obscenos são feitos no escurinho dos gabinetes e sem passar cavaco a ninguém.

Sugerir correcção
Ler 35 comentários