"Se me tivesse apanhado não tinha sobrevivido.” Portuguesa relata episódios racistas na Polónia

Dez dias depois do episódio de violência, Linda Pereira ainda não sabe se vai ter ajuda jurídica por parte das autoridades portuguesas. "Nada de cabrões pretos. Só brancos", ouvi naquele bar, naquela noite.

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REUTERS/Max Rossi

Era uma noite banal para Linda Pereira, socióloga de 25 anos, portuguesa de origem guineense a fazer voluntariado em Sosnowiec, na Polónia. No fim de um dia de trabalho, saiu com os colegas de voluntariado. Num dos bares por onde passou, foi violentamente agredida naquilo que, acredita, se tratou de um ataque com motivações racistas.

Está na Polónia há pouco mais de um mês – chegou no dia 4 de Dezembro, ao abrigo do Serviço de Voluntariado apoiado pelo Erasmus+. Este episódio de violência aconteceu na noite de 14 para 15, conforme detalha em conversa telefónica com o PÚBLICO. “A nossa cidade é um bocado mais isolada, um subúrbio”, começa por explicar.

Foi a primeira vez que saiu à noite desde que chegou à Polónia. Naquele dia, pelas 21h, saiu para ir tomar um copo com os colegas, espanhóis e italianos, e explorar alguns bares. “Já estávamos a ir para casa quando começámos a ouvir a música e entrámos num bar”. O último da noite, onde se registaram as agressões. Entrou com os dois rapazes que estavam no grupo – as duas outras raparigas que estavam com ela não quiseram descer.

“Eu instalei-me, deixei a mala, comecei a tirar o casaco, quando ouço uma pessoa a gritar na minha direcção. Com a música e o fumo – estava muito fumo naquele bar – só quando o homem se aproximou é que começou a ficar mais claro o que ele dizia: ‘No motherfucking black, no motherfucking black. White only’ [“Nada de cabrões pretos. Só brancos”].

As agressões começaram a seguir: “Para minha surpresa, ele agarrou-me no braço, atirou-me ao chão e começou aos pontapés, aos socos e eu só perguntava ‘o que é que eu fiz?’. Consegui segurar-me no balcão do bar e pus-me de pé. As três empregadas estavam a rir-se e os outros a dançar ao lado. Ninguém interveio.”

O homem, que mais tarde identificaria como o segurança do espaço, continuou a agredi-la. Nesse momento, as duas raparigas que a acompanhavam desceram para saber o que se passava, porque estavam a demorar mais tempo do que o esperado. Também foram agredidas: “A espanhola foi atirada ao chão e partiram-lhe os óculos. A colombiana foi empurrada com uma força [por um homem] e perdeu os sentidos. Nessa altura eu consegui sair do bar.”

Ainda se emociona quando fala do que aconteceu: “Já aconteceu há dias. Mas cada vez que me lembro… Ainda não ultrapassei.”

Saiu do bar para pedir ajuda, mas estava em pânico e até para chamar o 112 teve dificuldade. Não estava muita gente na rua pelas 3h, recorda, mas as poucas pessoas que passavam também não a ajudaram.

Quando conseguiu ligar para a polícia só lhe perguntavam se tinha conseguido fotografar os agressores, para os identificar. “Quando a polícia chegou eram só dois e diziam que não conseguiam entrar porque já receberam denúncias daquele bar, que tem má fama. Perguntaram-nos o que estávamos lá a fazer e até parecia que éramos nós os culpados. Nós não sabíamos. E se eles sabiam que só lá ia gente má, por que é que não fecharam o clube? Agora estamos num sistema de apartheid onde os bons circulam de um lado e os maus do outro?”

“Eu sou extremamente negra e eles são extremamente brancos”

Depois daquela noite, tudo passou a fazer sentido para Linda. “Já tinha sentido os olhares na na rua, mas eu achava que era a diferença de cor, eu sou extremamente negra e eles são extremamente brancos. É aquela coisa, quando a gente vê. E numa cidadezinha as pessoas ainda não estão acostumadas a pessoas de outra cultura.”

Mas os olhares foram o mais inofensivo que lhe aconteceu. Relata um episódio num centro comercial, quando três homens lhe puxaram o cabelo. Outro, que lhe ficou marcado, aconteceu num eléctrico, onde um homem começou a olhar, a chamar-lhe nomes e a fazer-lhe “gestos obscenos”. “Graças a Deus tinha sempre os meus colegas aqui de Erasmus. Se ele me tivesse apanhado não tinha sobrevivido.”

Linda ainda não sabe se vai ter ajuda jurídica

Logo no dia a seguir foi aconselhada por alguns colegas de Direito a contactar a embaixada portuguesa em Varsóvia, a capital do país, a mais de 300 quilómetros de distância. Assim fez. Mas a resposta tardou. “Os italianos e espanhóis, no dia seguinte, contactaram logo a embaixada deles. Da nossa parte, enquanto portugueses é muito mais moroso.” Enviou e-mails e ligou, mas não teve resposta imediata. No último domingo recebeu a visita do cônsul na sua casa: “O cônsul realmente veio cá a casa, ver-me mas eu sei que foram as associações em Portugal [a fazer pressão].”

“Agora ainda não sei se vou ter ajuda jurídica, até porque não falo polaco. Os outros vão ter, assim como tradutores. Eu não sei ainda se a embaixada me vai ajudar nesse sentido ou não.”

Contactada pelo PÚBLICO, fonte da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas confirmou que a jovem tentou contactar a embaixada em Varsóvia, sem sucesso: "Numa primeira fase não conseguiu falar com a embaixada em Varsóvia porque está a 300 quilómetros [da capital]". 

"No domingo foi visitada pelo nosso número dois, responsável pela secção consular da embaixada em Varsóvia, que falou com ela e aconselhou-a a apresentar queixa junto das autoridades polacas." Conselho que Linda Pereira seguiu.

“Agora, procuraremos apoiar esta cidadã para fazer valer os seus direitos, neste caso a salvaguarda de um direito fundamental, poder estudar sem que quaisquer impedimentos e atitudes possam criar qualquer obstáculo ou preconceito em relação à sua nacionalidade”, disse o secretário de Estado à Lusa, na terça-feira. 

“Estou exposta”

Linda decidiu contar tudo nas redes sociais. “Até tirei foto ao próprio clube. Eu tenho de fazer qualquer coisa, vou pôr isto na minha página, contar o que se está a passar. E ninguém está a fazer nada.

A maioria das mensagens foram de apoio. Mas nem todas foram boas. Recebeu mensagens a dizer que “nunca devia ter saído” do seu país, ou que se “não tiver a pele tão branca como a bandeira polaca devia sair”. 

“Ainda recebi mensagens ameaçadoras com a bandeira [com a cruz] suástica. Por acaso, o meu colega italiano antes de desmaiar lembra-se que um dos agressores tinha essa tatuagem. Recebemos pedidos de amizade desses perfis, mandavam mensagens a dizer que da próxima vez não terei hipótese e que isto foi um aviso...” 

Se tudo tivesse corrido bem, ficaria na Polónia durante 11 meses. Agora, já não tem a certeza: “O voluntariado prevê-se durar 11 meses, mas eu não sei... Se com isso tudo eu vou aguentar. A minha liberdade que está a ser ameaçada. Aqui às 16h já é de noite. E estou com medo de sair à rua sozinha”.

“E se não tiver outra chance? E se estiver sozinha? A verdade é que eu estou exposta.”

“Cuspiram para os pés e atiraram garrafas de vidro”

Este é um caso extremo, mas não foi único. Inês Costa tem 21 anos e fez Erasmus em Varsóvia, capital da Polónia durante a licenciatura, no ano passado. A ela nunca lhe aconteceu nada de grave, mas recorda-se de alguns episódios: “Houve algumas pessoas que me ignoraram e viraram as costas quando lhes pedi indicações para chegar a sítios e uma ou outra que me atirou o troco no supermercado, mas nunca fui insultada nem agredida. No entanto, Varsóvia é a capital e, portanto, à partida, tem mais abertura, até porque recebe mais turistas.”

Noutras cidades, as reacções são mais violentas. “Sei de alguns rapazes que foram impedidos de entrar em discotecas só por serem mexicanos e conheci uns portugueses brancos que fizeram Erasmus em Lodz, uma cidade ultraconservadora, e eles contaram-me que eram constantemente intimidados. Houve ocasiões em que lhes cuspiram para os pés, atiraram garrafas de vidro e os ameaçaram com gás pimenta ou os mandaram de volta para o país deles.”

“Antes de ir para a Polónia até estava bastante apreensiva porque tinham saído notícias sobre a marcha nacionalista de Varsóvia e de mais portugueses em Erasmus que se queixavam de intimidações e agressões. Sinceramente, pensei que até estaria em risco acrescido por ser mestiça”, conta ao PÚBLICO. “É bastante preocupante porque este cenário está a tornar-se muito comum por toda a Europa, não só na Polónia”.

Não há, no entanto, dados que permitam perceber se estes episódios estão a aumentar na Polónia, de acordo com o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, contactado pela Lusa. “A Polónia é um país comprometido com os valores europeus e devemos procurar contribuir para que assim aconteça”, disse.

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