O Natal da vírgula: relevância vs. intensidade

Os debates intensos mas poucos relevantes esgotam quase toda a largura de banda de que dispomos para os debates relevantes mas talvez pouco intensos que deveríamos ter

Nenhuma quadra natalícia fica completa sem a sua dose de momentos incómodos em família. Há uns anos, na minha aldeia e na minha família, dois dos meus irmãos zangaram-se a sério por causa de uma vírgula. Vou correr o risco de tentar contar a história sem que nenhum deles se zangue comigo — lembrem-se por favor, meus irmãos, que eu gosto muito de vocês e que só trago aqui esse Natal longínquo por causa do seu potencial pedagógico. Em traços largos, e sem querer reabrir a polémica, o que se passou foi o seguinte. Um dos irmãos tinha oferecido um livro de poesia sua a todos nós; todos agradecemos, mas passado um pouco outro dos meus irmãos diz “olha, tens aqui uma gralha”. “Uma gralha, a sério, onde?!”. “Aqui logo no primeiro poema, olha”. “O quê, essa vírgula? Isso não é uma gralha”. “Ai é sim”. “Não é não”. E por aí adiante. Todos achámos imensa piada ao diálogo; achámos menos piada quando ele se prolongou por todo o almoço de Natal e continuou enquanto descíamos a aldeia até ao café na sociedade recreativa, e depois disso.

Acho que vou deixar a história por aqui. Quem nunca teve uma discussão familiar no Natal que atire a primeira pedra. Só trago esta história para falar de uma coisa importante: a distinção entre relevância e intensidade no debate público.

A discussão sobre se aquela vírgula era ou não uma gralha foi certamente intensa; a sua relevância não era, no entanto, grande. O cientista político Wallace Stanley Sayre (1905-1972) alegaria que é precisamente porque a discussão era pouco relevante que ela se tornou tão intensa: uma chamada Lei de Sayre proclama que “em qualquer debate a intensidade dos sentimentos é inversamente proporcional à relevância dos valores em causa”.

Todos os anos temos uma quantidade infinda de controvérsias, casos e polémicas. Em política, em futebol e casos sociais mais ou menos corriqueiros. Muitas vezes a intensidade do debate é tanta que não se fala de mais nada. Se nos perguntarmos, porém, passado umas semanas, se esse debate resultou em qualquer consequência significativa de que nos lembremos, a resposta é quase sempre negativa — o debate era, na prática, irrelevante.

Evitarei exemplificar por uma razão: como os meus irmãos poderiam demonstrar, o debate é sempre imensamente relevante para quem o vive com intensidade. Experimentem dizer a alguém que vive um debate com muita intensidade (seja ele sobre o acordo ortográfico, as burkas ou o vídeo-árbitro) que este é pouco relevante e vejam como essa pessoa reage. Só há uma coisa pior do que estar do lado contrário a um adepto de um desses debates; é estar de lado nenhum, ou seja, estar do lado de que o debate não é assim tão importante.

Evitarei portanto particularizar, mas ainda assim direi: o meu desejo de novo ano — um ano importante, que será eleitoral na Europa e em Portugal — é que nos tornemos conscientes, em cada momento, da relevância e da intensidade de cada debate que iniciamos. Não peço que tenhamos apenas debates hiper-relevantes e que nos escusemos às polémicas hiper-intensas. Isso seria provavelmente exigir a nós mesmos um auto-controle individual e coletivo praticamente impossível. Mas a verdade é que os efeitos da Lei de Sayre na era das redes sociais globalizadas começam a ser decisivos para a política que temos e o futuro que teremos. Por duas razões.

A primeira é que os debates intensos mas poucos relevantes esgotam quase toda a largura de banda de que dispomos para os debates relevantes mas talvez pouco intensos que deveríamos ter. Se eu escrever sobre um deputado que ressonou no hemiciclo tenho milhares de partilhas; quando escrevo sobre os votos que se perdem em mais de metade do país, na qual os círculos eleitorais só elegem deputados dos dois maiores partidos, violando o princípio da igualdade entre portugueses, terei no máximo uma dezena de partilhas. E no entanto, ninguém duvidará que o segundo debate é muito mais relevante do que o primeiro.

A segunda razão é que há movimentos políticos de sucesso baseados na artimanha de saber injetar na sociedade debates intensos mas não necessariamente relevantes. Donald Trump é o símbolo máximo dessa tendência: ganhou a Casa Branca ao prometer fazer um muro anti-imigração num momento em que a imigração diminuía e quando a maior parte dos imigrantes não chegam por fronteira terrestre — e isso ainda antes de lembrarmos que, na verdade, a imigração tem sido enormemente positiva para o seu país. Outros exemplos serão os da reintrodução da pena de morte ou da diminuição do número de deputados; ambos debates que não resolvem nenhum dos problemas que dizem procurar resolver mas que conseguem, em determinadas circunstâncias, concentrar a atenção do eleitorado em vigaristas e autoritários.

Não por acaso, há quem esteja interessadíssimo em que esses debates ocupem os públicos de determinados países-chave. Relembre-se como os canais e os perfis falsos em redes sociais controlados por Putin amplificaram um falso caso de uma violação na Alemanha, supostamente perpetrada por refugiados, num momento decisivo para o crescimento do partido de extrema-direita AfD, Alternativa para a Alemanha.

Em 2019 antevejo a ocorrência de inúmeras tentativas de manipular a opinião pública europeia e nacional, sem que em cada caso se façam as seguintes perguntas: quantos casos destes existem mesmo? quantas pessoas são realmente afetadas pelos factos em apreço? que efeitos práticos terão as pseudo-soluções propostas por quem domina o debate com pseudo-polémicas? e por que razão se fala disto mas não de pobreza infantil, ou de quem dorme na rua, ou das alterações climáticas, ou do futuro de Portugal e da Europa em plena globalização?

Uma sociedade madura saberá em cada momento fazer estas perguntas e desvalorizar o que deve ser desvalorizado.

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