O peru novo

Em casa dos meus pais engordávamos um peru todos os anos, mas afeiçoávamo-nos a ele e chorávamos para que não o matassem.

É noite de Natal. As lojas estão todas fechadas. Dantes eu entrava em pânico. Ia para um hotel para não ficar sozinho. Havia jantar de consoada, mas serviam-no muito depressa para acabar por volta das nove, para os empregados poderem ir a correr para casa e ainda apanhar a consoada deles.

Já não conheço essa pessoa. Continuo virgem em matéria de consoadas — não foi fácil —, mas agora aprecio a calma da noite, a leveza de toda a gente em casa, a sensação vaga de comunidade e de pertença.

Este ano até comprámos um peru para fazer. Em casa dos meus pais engordávamos um peru todos os anos, mas afeiçoávamo-nos a ele e chorávamos para que não o matassem.

Antes de aprendermos esta forma de luta o peru era embriagado com um litro de aguardente antes de ser morto. “Ele não sente nada”, garantia o meu pai, não muito convincentemente, até porque não era ele que o matava.

Depois houve vários Natais em que o soltávamos sem pensar nas consequências. O meu pai ficava frântico: “Agora é que ele vai ser comido de certeza, graças a vocês.”

Este ano o peru já está morto e a aguardente vai para o alguidar cheio de alecrim e laranjas onde ele fica a hidratar. Aconselham-nos o bagaço São Domingos. A garrafa é de litro e fica metade para o Natal que vem. Há aguardentes que são difíceis de encontrar. Em Portugal o que é difícil encontrar é uma loja, por muito rústica, onde não haja uma garrafa de São Domingos à venda.

O pior do Natal são os conselhos que nos dão: este ano faça isto, aproveite para não sei quê, siga a nossa sugestão.

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