My vovó, my vovô: uma crónica de Natal luso-americana

Esta crónica poderia ter lugar numa lavandaria, numa estação de caminhos-de-ferro ou num restaurante.

Esta crónica poderia iniciar-se em East Providence, Providence, Pawtucket ou mesmo Newport, no estado de Rhode Island, EUA. Em New Bedford, Fall River, Taunton, no Sul do Massachusetts, Provincetown, no extremo ocidental do mesmo estado, ou mesmo Lowell, na fronteira norte. Esta crónica poderia ter lugar numa lavandaria, numa estação de caminhos-de-ferro ou num restaurante. Mas esta crónica só poderia ter como título “my vovó, my vovô”, porque essas eram as palavras que quase sempre apareciam nas conversas com os portugueses destas terras.

E foram muitas conversas, porque há portugueses — e cabo-verdianos —por todo o lado nesta região. E agora que regressei a Portugal, não poderia deixar de escrever sobre esse outro Portugal surpreendente que se descobre na “América de Baixo”, como os açorianos lhe chamaram (a “América de Cima” é a Califórnia).

Em Portugal continental, quando se ouve falar de portugueses nos EUA é de Newark (New Jersey, mas praticamente em frente a Nova Iorque) que se fala. Mas depois de se descobrir a comunidade portuguesa e lusófona da Nova Inglaterra (como se chama aos seis estados do Nordeste dos EUA, incluindo Rhode Island e Massachusetts), a escala é outra. Aqui estamos a falar de cerca de 400 mil pessoas, em dezenas de cidades, numa extensão de centenas de quilómetros de cidades costeiras e algumas do interior, onde a indústria da caça à baleia, primeiro, e a indústria têxtil, depois, trouxeram a estas bandas muitos milhares de portugueses há mais de um século.

É portanto uma comunidade mais numerosa e mais antiga, feita de várias comunidades (açorianos de várias ilhas, cabo-verdianos que chegaram como portugueses ou já depois da independência do seu país, portugueses continentais e até alguma antigas comunidades madeirenses) e de várias gerações, do século XIX (pelo menos, embora tenha havido aqui também uma diáspora de judeus portugueses) até ao século XXI. Os portugueses têm aqui um canal de televisão próprio, além de terem lutado com sucesso pelas transmissões da RTPi nos anos 90 — uma manifestação encheu uma praça de Taunton, Massachusetts, com milhares de portugueses que vieram até do Hawai. Uma noite na estrada encontro de repente na telefonia o canal de língua portuguesa, o único não anglófono na região onde me encontrava: nele, um programa dedicado à comunidade cabo-verdiana debatia racismo, pedagogia e a infância cabo-verdiana nos EUA. A qualidade era grande, e grande era também a relevância daquelas redes de comunicação e sociabilidade.

Nos liceus há aulas de Português — deveria haver mais, naturalmente, mas o que importa é que existe a infra-estrutura arduamente construída durante décadas para que mais se possa fazer. A Brown University, onde dei aulas este semestre (no programa financiado pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e generosamente liderado na Brown por Onésimo Teotónio de Almeida), tem um departamento de estudos portugueses e brasileiros de altíssima qualidade. Talvez menos conhecido em Portugal é o excelente departamento de estudos portugueses da Universidade de Massachusetts em Dartmouth, agora dirigido pela lusitanista Anna Klobucka, não só muito bom do ponto de vista académico como dotado de excelente equipamento, a começar por um notável arquivo da imigração portuguesa nos EUA. Até no Norte do mesmo estado, em Lowell, a Universidade de Massachusetts tem agora um programa de estudos dirigido por Frank Sousa, que esteve à frente de Dartmouth e veio agora com ambição de construir um novo pólo nos estudos portugueses numa comunidade historicamente madeirense e mais recentemente oriunda da ilha da Graciosa, nos Açores. E há potencial para mais, dependendo da capacidade política que a comunidade portuguesa e lusófona mantiver e ganhar aqui (há vários autarcas e deputados lusófonos e lusodescendentes aqui, mas ainda falta haver congressistas federais portugueses). Também Portugal deveria olhar para esta comunidade com um sentido estratégico ambicioso: em Rhode Island, o menor dos estados federados, os portugueses são em proporção tantos como no Luxemburgo; no Massachusetts, predominam em todo o Sul do estado. Está bastante já feito em termos da importância cultural e política dos portugueses da Nova Inglaterra, principalmente pela própria capacidade de realização que a comunidade tem tido. Mas com ajuda do governo português muito mais se pode fazer, com vantagem para ambos os lados do Atlântico.

Os portugueses daqui lembram-se dos avós e falam deles com carinho num inglês misturado de expressões portuguesas — my vovô, my vovó, quase sempre dito num sotaque açoriano —, receitas de caldo verde e mal-assadas, que são os fritos de Natal açorianos. No caso das gerações mais antigas, muitos já não falam português ou nunca visitaram os Açores. Mas os aviões que levam centenas ou milhares de outros açorianos às festas do Santo Cristo em São Miguel começam agora a levar muitos americanos, de ascendência portuguesa ou não, que descobrem a Europa a poucas horas de voo do continente americano — e não uma Europa qualquer, mas os Açores. Não é incomum encontrar na mesma rua açorianos que nunca foram às ilhas e americanos apaixonados pelo arquipélago.

É uma América e um Portugal ainda desconhecidos da maior parte de nós, cheios de história e de possibilidades futuras.

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