O avesso dos “coletes” portugueses

O que nos revela o avesso dos “coletes” portugueses é um espelho da nossa realidade política e social.

O flop das manifestações dos “coletes amarelos” portugueses é instrutivo por várias razões.

1) Esse flop era altamente (senão absolutamente) previsível, tendo em conta que qualquer imitação é sempre pior do que o original e que não era possível reproduzir as motivações específicas do movimento francês (aqui expostas há duas semanas). Não se importam “coletes amarelos” de improviso.

2) Nas redes sociais pode-se ficcionar uma realidade alternativa em que os agentes de uma determinada acção se revêem mas que não se substitui à própria realidade (apesar do papel insidioso e cada vez mais tóxico das fake news e das teorias da conspiração).

3) A dramatização mais ou menos intensa que o Governo, o Presidente da República, as forças de segurança e amplos sectores da comunicação social emprestaram à iniciativa dos “coletes” portugueses veio revelar três coisas diferentes mas, afinal, complementares: uma incapacidade de leitura dos sinais dessa iniciativa, distinguindo-a do fenómeno francês; o temor do poder político perante o desconhecido e o imprevisto (explicável, porventura, pelas sucessivas incapacidades de previsão e falhas clamorosas no funcionamento do Estado que se vêm repetindo: Pedrógão, Tancos, Borba, por exemplo); ou simplesmente um cinismo preventivo para exagerar os perigos de desordem e violência, visando desmobilizar as hostes eventuais dos manifestantes e, assim, conseguir uma boa fotografia de um governo que tende a ser apanhado de surpresa pelos acontecimentos.

No entanto, para além destas constatações, o que nos revela o avesso dos “coletes” portugueses é um espelho da nossa realidade política e social. Temos uma sociedade civil ainda muito enquadrada pelos aparelhos partidários e sindicais, o que não acontece em França, onde a vitória de Macron nas presidenciais de 2017 provocou uma alteração radical da paisagem política – e à qual se seguiu, entretanto, um vazio aproveitado pela insurreição dos “coletes amarelos”. Por outro lado, a frustrada tentativa dos “coletes” portugueses de imitarem os seus congéneres franceses coincidiu com um surto de greves como há muito tempo não se registava em Portugal, afectando os serviços públicos mais sensíveis e denunciando um acentuado mal-estar corporativo (incluindo na Justiça, face à eventualidade de uma mudança de composição do Conselho Superior do Ministério Público ou através das reivindicações de estatuto dos juízes). Essa efervescência grevista não poderia deixar de afectar um movimento inorgânico como o dos “coletes”, cuja agenda reivindicativa era, aliás, confusa, improvisada e errática – tão errática, de resto, como foi a sua ocupação dos locais onde protestavam – e cuja mensagem principal terá sido uma rejeição populista da classe política.

Tudo indica que o ano eleitoral de 2019 irá ser marcado pelo confronto entre o Governo e os movimentos grevistas, pondo cada vez mais à prova a habilidade e a capacidade de resistência de Costa para navegar entre os cadernos reivindicativos dos sindicatos e os equilíbrios orçamentais de que Centeno é o sumo-sacerdote. Só se houver uma ruptura nesse equilíbrio instável, sem controlo dos danos por parte do Governo e das forças políticas e sindicais – e sem o PS alcançar a maioria absoluta, já que a “geringonça” não parece ser repetível –, é que um movimento de protesto inorgânico de cariz mais ou menos populista poderia introduzir-se no espaço deixado pela fractura exposta. De qualquer modo, por temor ou por cinismo, o Governo já deixou antever esse cenário nesta imitação falhada dos “coletes amarelos”.

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