2019 – um ano perigoso

Mesmo neste pacato país, o rastilho anda por aí; uma iniciativa política mal gerida pode acendê-lo.

Cumprir-se-ão no dia 1 de Janeiro dois anos da morte de Anthony Atkinson, um economista inglês que dedicou a sua vida ao estudo da desigualdade. O seu último livro – Inequality, what can be done? – foi publicado dois anos antes, em 2015; nele, Atkinson descreve o “inequality turn”, ou viragem da desigualdade, a partir dos anos 80, que atribui a uma conjugação de fatores: globalização, desregulamentação dos mercados de trabalho, perda de poder dos sindicatos, importância crescente dos mercados financeiros, tecnologia. E também a uma mudança radical na política de redistribuição dos governos dos países desenvolvidos, inspirados pelas reformas fiscais de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, que diminuíram a taxa de IRS aplicada aos rendimentos mais altos de 83 para 60%, no Reino Unido, em 1979, e nos EUA de 70 para 50%, em 1981, e depois para 38,5%, em 1986. Deixa-nos um aviso: a desigualdade extrema é incompatível com o bom funcionamento da democracia.

A profecia de Atkinson está a realizar-se. O site de opinião Project Syndicate (www.project-syndicate.org) publicou por estes dias a revista The Year Ahead, dedicada ao ano de 2019, escrita por políticos e académicos – incluindo três economistas que receberam o prémio Nobel. O título é sugestivo: “The Great Disruption”. Disruption significa “prevenir um sistema, processo, ou evento, de continuar a funcionar como é habitual ou expectável”. 2019 será, portanto, o ano da Grande Rutura do nosso sistema de mercado, político e diplomático. Não digo disrupção porque essa palavra está gasta na adoração provinciana das web summits e start ups, e não é bem disso que quero falar hoje.

Portugal tem vivido nos últimos anos num clima de relativa serenidade devido à política de devolução de rendimentos do Governo do PS, com a pobreza a diminuir e os indicadores de confiança a subir. A percentagem de portugueses que confiam no Governo, segundo o Portal de Opinião Pública da Fundação Francisco Manuel dos Santos, aumentou de 15% em novembro de 2015 para 55% em março passado. Mas não é por isso que estamos livres de Gilet Jaunes, ou outra forma inorgânica de protesto dos despojados da promessa de prosperidade do século XXI.

A taxa de pobreza é atualmente de 18,3%, o que constitui uma melhoria face a anos anteriores, mas é ainda superior à do período pré-crise. Se quiser saber o que é ser pobre em Portugal, leia as excelentes reportagens publicadas pelo PÚBLICO nas últimas semanas. Cerca de 8% da população vive em famílias com intensidade laboral reduzida, que é o termo estatístico para designar situações em que as pessoas em idade laboral trabalham menos de 20% do tempo. Mais de 10% das trabalhadoras e trabalhadores são pobres em Portugal. E nunca é demais recordar que somos um dos países mais desiguais da UE – em 2017, apenas a Bulgária, a Lituânia, a Letónia e Espanha tinham uma distribuição do rendimento mais desigual do que Portugal.

Dois dos suspeitos de Atkinson – a globalização e a tecnologia – deixaram já feridas em Portugal. Os economistas Sónia Cabral, Pedro Martins, João Pereira dos Santos e Mariana Tavares, num estudo intitulado “Collateral Damage? Labour Market Effects of Competing with China”, mostram como a concorrência da China diminuiu os salários e o emprego em Portugal, sobretudo nas mulheres, nos trabalhadores menos educados e mais velhos, confirmando resultados semelhantes nas economias americana, alemã, norueguesa ou francesa, entre outras. Os economistas Maarten Goos e Alan Manning foram os primeiros a mostrar como a automação, ao substituir empregos rotineiros e precisos, feitos por trabalhadoras com salários médios, é responsável por uma crescente polarização dos mercados de trabalho entre empregos “lovely” (adoráveis), bem pagos e confortáveis, e “lousy” (asquerosos), ou seja, mal pagos, com horários incompatíveis com a vida pessoal, com maiores riscos para a saúde física e mental. Tiago Fonseca, Francisco Lima e Sónia Pereira, no artigo “Job polarization, technological change and routinization: Evidence for Portugal”, mostram que esta polarização de origem tecnológica existe desde meados dos anos 90 no mercado de trabalho português.

Portanto, mesmo neste pacato país, o rastilho anda por aí; uma iniciativa política mal gerida, à semelhança do que aconteceu em França com o imposto sobre os combustíveis, pode acendê-lo. Quando ele começar a arder, vai ser preciso chegar-se à frente, como fez Macron, em desespero de causa, há duas semanas; não será certamente um qualquer almoço de Marcelo Rebelo de Sousa com camionistas, com o objetivo de “demover a radicalização”, que acalmará o desespero das pessoas.

Em 2019 vamos ter eleições europeias em maio e legislativas em outubro. Será portanto um ano de debate democrático. Como não sei fazer previsões, vou deixar um desejo. Que este debate se centre na discussão das políticas que queremos ter para diminuir a polarização da sociedade e preservar a democracia. Parece-me evidente que soluções eficazes só se podem implementar à escala europeia ou, pelo menos, entre um grupo significativo de países da União. Atkinson pede mais progressividade nos impostos sobre o rendimento e propriedade, incluindo heranças. O Manifesto para a Democratização da Europa, recentemente lançado por um grupo liderado por Thomas Piketty, repousa em impostos sobre os lucros das grandes empresas, sobre os grandes proprietários e sobre as emissões de carbono. A mobilidade das empresas, do capital e dos trabalhadores qualificados exige que políticas como estas sejam discutidas e implementadas à escala da UE. Vai ser necessário voltar a uma regulação dos mercados com preocupações distributivas explícitas, como defendeu Atkinson, e regular as plataformas da nova economia digital, como discute outro economista, Jean Tirole, no seu livro A Economia do Bem Comum. Outro grande desafio destes tempos de incerteza são as migrações, que têm fomentado sentimentos de insegurança nas populações mais vulneráveis. Em qualquer destas matérias, só com um grupo alargado de países é que vamos poder avançar. A 26 de maio, elegemos o novo Parlamento Europeu. São 146 dias para evitar a grande rutura. Uma responsabilidade de todos nós.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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