Um veto avant la lettre

Ao tomar partido por uma das propostas, o Presidente da República está a criar um facto político em torno da Lei de Bases da Saúde.

Logo que foi anunciada a aprovação da proposta de Lei de Bases da Saúde pelo Conselho de Ministros, mal colocaram um microfone à frente do Presidente da República foi para avisar os deputados de que vetaria a lei que lhe enviassem se não tivesse obtido o consenso parlamentar. Descodificando, se não fosse aprovada, pelo menos, pelo PS e pelo PSD. As razões não eram se era uma boa lei, servindo os portugueses, respondendo aos desafios colocados pelos novos problemas de saúde, cobrindo as necessidades em saúde, salvaguardando o papel do SNS na protecção da saúde da população. Ao tomar partido por uma das propostas, o Presidente da República não está a fazer um julgamento de valor sobre os dois trabalhos em causa, o da comissão governamental e o da ministra da Saúde, está a criar um facto político: tentar semear a discórdia e procurar estabelecer a divisão dentro do PS, principalmente dentro do seu grupo parlamentar, já que a única coisa que o seu partido tem para apresentar é o powerpoint de Luís Filipe Pereira. É nesse domínio político que ele investe o seu portfolio de selfies, beijos e abraços.

Não lhe veio à memória que em 1990 a Lei de Bases foi aprovada exclusivamente pelo PSD, tendo durado 28 anos. Nesse tempo, porventura assoberbado com os afazeres de vereador da CML, não fez ouvir a sua voz a favor do almejado consenso sobre a matéria. Nem se lembrou de que a lei do SNS, de 1974, teve os votos contra do PSD e do CDS. Estes dois exemplos associados à peregrinação a Belém do grupo dos 44, poucos dias antes da decisão do Conselho de Ministros, são a melhor ilustração de que no sector da saúde, onde se joga cerca de 10% do PIB, a probabilidade de se obter qualquer consenso com a direita aproxima-se bastante do zero. A não ser que o PS venha a abdicar dos seus compromissos, traindo a memória de António Arnaut e o seu legado político.

É verdade que não está na proposta do Governo aquilo que porventura mais lhe dói politicamente, ter sido suprimida a natureza complementar entre o SNS e o sector privado, conhecida pela teoria dos dois hemisférios. A característica que autorizava a evolução do Serviço Nacional de Saúde para um Sistema Nacional de Saúde, aberto à voracidade do sector privado e onde o serviço público iria substituir o papel antes atribuído às misericórdias. Nem a flexibilidade, aquela qualidade própria dos contorcionistas, boa para justificar todas as mudanças de direcção e todas as combinações espúrias. Aquilo que em dada altura, quando a comissão governamental para a elaboração dos termos de referência da proposta de Lei de Bases da Saúde iniciou os trabalhos, foi defendido por ele.

Chegou agora a vez de a Assembleia da República se pronunciar pela voz dos seus deputados sobre o que há-de vir a ser a Lei de Bases da Saúde para os anos mais próximos. É a vez da troca de argumentos, do contraditório, de quem vota contra e de quem vota a favor. É isto a democracia representativa. O mais, a partir desta altura, da parte dos outros órgãos de soberania, é manterem-se serenos e fazerem o menor ruído possível. Os partidos, as bancadas parlamentares e os actores sociais hão-de fazer a escolha que melhor servirá a saúde dos portugueses.

Em circunstância alguma cabe ao Presidente da República ameaçar o Parlamento, nem ninguém. Isso é próprio de democracias tuteladas. E já nem os tutores aplicam essa técnica de persuasão. A não ser em situação de desespero de causa. Espera-se do Presidente da República que cumpra as funções que a Constituição lhe atribui, escusando-se a meter o pé na porta ou arrombando-a quando ela não se abre. No caso, aguardar pelo resultado da discussão das propostas que forem apresentadas e pronunciar-se quando chegar a sua vez. É simples, é democrático e é constitucional.

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