Surdez

O que terá o Establishment de comum para suscitar a revolta em lugares tão díspares e distantes entre si?

“O mentiroso utiliza as designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real. [...] Se ele actuar desta maneira em proveito próprio e prejuízo dos outros, então a sociedade perderá a confiança que nele depositava e exclui-lo-á por isso.”
F. Nietzsche, Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral, 1873

Deixámos de entender o mundo. Há dois anos que vivemos atónitos: primeiro foi a eleição de Trump nos EUA, agora a de Bolsonaro no Brasil. Esta anomalia desconcertante redireccionou o nosso olhar para uma retrospectiva da segunda década do séc. XXI, em que sucessivos tabus democráticos foram sendo violados sem que, aparentemente, o Establishment se tenha dado conta de que algo de sistémico estava a ser abalado, e que não se tratava de ocorrências rebeldes remendáveis caso a caso.

Um exemplo precoce desta terapia tópica aconteceu na Áustria, em 2000. Sob a liderança de Jörg Haider, o FPÖ (Partido da Liberdade Austríaco), a extrema-direita xenófoba, anti-imigração e anti-Europa chega ao poder em Viena. A Europa reagiu ríspida e colectivamente através do Parlamento Europeu, que adoptou uma Resolução em que se comprometia a vigiar severamente qualquer desvio dos princípios do governo democrático e do Estado de Direito. Tratou-se, claramente, de uma intrusão abusiva nos assuntos internos de um Estado membro da UE. Vários Estados, da Bélgica à França, passando pela Dinamarca e pela Inglaterra, accionaram medidas de retaliação diplomática, montando um cordão sanitário em torno da Áustria, não fosse a peste descambar em epidemia. Em vários países europeus verificaram-se protestos da extrema-direita contra a diabolização da Áustria, mas, claro, foram ignorados como ilegítimas manifestações de racismo e de nacionalismo “fascista”. A coligação austríaca teve vida curta, e o Establishment, de consciência tranquila, recostado nos seus gabinetes alcatifados e insonorizados, retomou descansadamente o “business as usual”.

Porém, na segunda década deste século, recomeçou a insubordinação contra a ordem europeia. Num curto período fomos confrontados com outros fenómenos, possivelmente menos espalhafatosos do que as retumbantes eleições de Trump e Bolsonaro, mas que geraram perplexidade e até medo: a notória inclinação direitista e autocrática registada em vários países da Europa de Leste, com destaque para a Polónia e a Hungria, governadas por partidos conservadores e ultra-nacionalistas, insensíveis à causa dos refugiados, nada amigos nem da União Europeia, nem da imigração.

No pólo oposto, à esquerda, o Movimento Cinco Estrelas de Beppe Grillo, um palhaço profissional, emergiu em 2013 como o segundo partido mais votado. A Europa estremeceu, mas a Itália sempre fora um país esdrúxulo, e por isso o caso foi visto como mais uma extravagância dos incorrigíveis italianos. Porém, houve razões para novo espanto. As bandeiras do Cinco Estrelas eram a anti-corrupção e a democracia directa, dado que a democracia representativa italiana estaria apodrecida. Os que não se reviam no Establishment foram suficientes para garantir o primeiro sucesso eleitoral do Movimento, apenas três anos após ter sido lançado. Já nas legislativas de 2018, o Cinco Estrelas, com Di Maio como candidato a primeiro-ministro, foi o partido que obteve mais votos, mas não a maioria absoluta. Para espanto da Europa, Di Maio coligou-se no governo com Salvini, o líder da Liga Lombarda conhecido pelo seu direitismo e pela sua rejeição anti-europeia. A conjugação dos dois anti-europeismos produziu um orçamento para 2019 rejeitado pela Comissão Europeia. Aguardam-se as cenas do próximo capítulo.

Mais perturbador foi a chegada ao poder da direita pura e dura na civilizadíssima Suécia, a brilhante montra centenária do socialismo democrático. Na Suécia, o país com maior percentagem de imigrantes, a intolerância dos nativos foi aumentando ao longo da década, sobretudo depois da enxurrada de imigrantes sírios que inundaram o país em 2015, no auge da crise dos refugiados. O partido Democratas Suecos, de extrema-direita nacionalista, anti-imigração e anti-Europa, entrou no Parlamento em 2010 com 5,7% dos votos. Em 2014, a votação duplicou folgadamente. Multiplicaram-se os ataques racistas; viveram-se dias nunca vistos de violência nos subúrbios urbanos; os crimes de ódio subiram em flecha. Nas eleições de 2018, os DS obtiveram 17,5% dos votos. Os social-democratas tiveram a votação mais baixa de sempre – 28,3%. A contabilidade eleitoral forçou-os a abrir as portas do executivo a esse peçonhento bando de xenófobos e racistas, uma gente bronca que não compreende nem aceita as imposições do elevado ideal humanitário pelo qual se norteiam os países civilizados.

Na Alemanha, o partido nacionalista e conservador, Alternative für Deutschland (AfD), fundado em 2013, ultrapassou nas legislativas de 2017 os dois dígitos e entrou triunfalmente no Bundestag. A Alemanha, porque foi nazi, não pode ser nacionalista; estava condenada a sofrer eternamente, a título de árdua expiação, de uma capitis diminutio. Claro que o Establishment bem-pensante despreza esta excrescência malsã, que irrompeu inoportunamente do corpo de um Volk recivilizado, do qual se espera para todo o sempre cosmopolitismo militante, solidariedade sem falha e generosidade sem fim. E se a AfD crescer, quem sujeitará a Alemanha a uma quarentena punitiva, quem a encerrará num cordão sanitário? E quem fará o mesmo à Suécia?

Recentemente, o Establishment ficou siderado com a inesperada votação que o partido nacionalista Vox obteve na Andaluzia, um antigo bastião do PSOE que se julgava inexpugnável. Mais um atrevimento que não se esperava do povo andaluz, briosamente socialistizado há 36 anos.

E a França! Quem tem mão na França? Tanta esperança depositada em Macron, mas em três semanas a cólera selvagem dos “coletes amarelos” deu com Macron em pantanas, demonstrando mais uma vez que a França é irreformável. A Alemanha contava com a França para consertar o motor europeu, mas afinal é a França, o grande doente da Europa, que precisa de conserto urgente. Macron acabou. E o “Brexit”, ninguém sabe como acabará. Pior: o Centro, apoio principal do Establishment, está em toda a parte a encolher em benefício de uma bipolarização dos extremos. Volta, Carl Schmitt, que estás perdoado! O consensualismo passou de moda.

Referindo-se a Bolsonaro, Bernard-Henri Lévy, em entrevista recente ao El País, comentou, escandalizado: “É pornografia política. [...] E não venceu através de um golpe, mas através das urnas.” Num hotel de São Paulo, envergando o raffinement parisiense, o filósofo, cruzando e descruzando elegantemente as pernas, perorou sobre a inane eleição de um brutamontes que “assombra” o mundo com a “incrível vulgaridade de alguns dos seus comentários”. Esta entrevista é o mais eloquente documento da surdez do Establishment bem-pensante.

O que terá este de comum para suscitar a revolta em lugares tão díspares e distantes entre si? Uma infra-estrutura intelectual e cultural herdada do século XX: a crença numa abstracta causalidade estrutural. Fomos todos formatados para pensar que os homens não são sujeitos ou autores de coisa nenhuma, porque tudo seria o produto de uma abstracta interacção entre estruturas. Até as mais refinadas previsões políticas são todos os dias desmentidas, provando que a História é um processo em aberto, porque é uma fabricação humana. As Ciências Sociais, escoradas em vários estruturalismos, evacuaram o homem de qualquer explicação causal sobre o curso do mundo; mataram as Humanidades, assumidamente um saber não científico mas altamente elucidativo, trocando-as por uma pseudo-ciência que falhou rotundamente a sua pretensão de explicar o nosso presente e prever o nosso futuro. Criaram uma forma mentis em que tudo é imputado a forças exteriores às ideias, às intenções e à vontade do que chamam “actores sociais”: meros agentes comandados por determinações que desconhecem e os transcendem. E forjaram, evidentemente, um léxico e uma linguagem adaptados a uma tão aberrante concepção do mundo humano: a chamada “langue de bois”, banalidades e fórmulas vácuas, vagas, que não comprometem porque nada significam em concreto, dando porém a ilusão de que se está a dizer algo de substancial. Pois bem: a fraude tornou-se indisfarçável, e os homens-sujeitos da nossa vida colectiva começaram a sair do armário, berrando a sua frustração, a sua raiva e o seu inconformismo. 2019 vai certamente prosseguir a batalha pela afirmação da liberdade humana, contra a ditadura das estruturas. 2018 fecha com uma caixa de Pandora aberta.

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