Saigon, I'm still only in Saigon

A arqueologia emocional a que procede o trabalho do documentarista Ken Burns é obrigatória - vários film fleuve no Netflix. Mas é preciso sair de casa para ver uma síntese poética e lunar do problemático "homem italiano".

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The Vietnam War (2017), Netflix

Marcello Fonte é filho de uma família de agricultores da Calábria, Sul de Itália. Um dia subiu a Roma, tinha 18 anos, e os trabalhos com que se desenrascou levaram-no ao set da Cinecittà de Gangs of New York, de Scorsese. Conseguiu fazer-se fotografar ao lado da estrela Leonardo DiCaprio. Pediu a quem passava que lhes tirasse a foto... pediu a Daniel Day-Lewis, Marcello não fazia ideia quem ele era. Isto não podia ser um episódio de um filme de Mario Monicelli? Podia. É mais uma prova de que a “comédia à italiana” baseou-se num visceral apego à vida — e às suas possibilidades de fantasia — e ao homem comum italiano — e ao seu carnavalesco pânico nos anos do boom económico, do fetichismo consumista. (Vale a pena viajar por essa performance no livro de Maggie Gunsberg Italian Cinema — Gender and Genre).

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Dogman, de Matteo Garrone
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O “filme” de Marcello Fonte não acabou ali, continuou: tornou-se actor, é o protagonista de Dogman, de Matteo Garrone (que chega às salas na próxima semana), uma interpretação que lhe valeu distinção em Cannes e nos prémios europeus de cinema. Dogman, aliás, com a sua brutalidade (e com os contornos de fábula, mas uma fábula espessa), tem ecos do embate terminal de Monicelli com a fealdade social em Un borghese piccolo piccolo (1977), o filme com que o cineasta que iniciara a “comédia à italiana” (I soliti ignoti, 1959) decidiu, devido ao desaparecimento da moral, matá-la. Garrone não é Monicelli. E vem depois dele — isto é, acha possível o pacto que Monicelli deu por terminado. Marcello Fonte também não é igual a Gassman, Tognazzi ou Sordi. Mas o seu rosto e a plasticidade da sua presença, a capacidade evocativa, fazem uma síntese, poética e lunar, da violência e fantasia a que, no passado, Gassman, Tognazzi ou Sordi deram corpo.

Dito isto, Saigon, shit, I’m still only in Saigon. Estou, no Netflix, com os 10 episódios de The Vietnam War (2017), a série, para a PBS, de Ken Burns e Lynn Novick, sobre a guerra em que os americanos caçavam fantasmas, conquistavam colinas e depois abandonavam-nas. É operação de resgate enquadrada por uma lição de história e de política — não é a televisão no seu ideal? Resgate de quê? Há algo de apoteótico, silenciosamente apoteótico, nesta construção épica que parte em busca, numa fotografia, numa sequência de arquivo ou num testemunho, do humano e do individual que desapareceu na grande escala. Procura-se nas histórias individuais possibilidade de reconciliação no irremediável — Burns fala numa “arqueologia emocional”. Com isto, e tal como fizeram em The War (2007), sobre a II Guerra, ou Prohibiton (2013), sobre o período da Lei Seca nos EUA (no Netflix também), Burns/Novick não revolucionam modelos — o documentário com talking heads. Mas elevam-no, desembaraçando-o da banalidade e revigorando uma razão de ser. É fazer viver os mortos, é reviver o Vietname, é reviver as canções, What’s going on, Let it Be, Bridge over Troubled Water, é reviver os filmes. Saigon shit i’m still only in Saigon...

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