Jornalismo e financiamento do Estado

Está efectivamente em causa a existência de imprensa livre, com capacidade para exercer a sua actividade com independência e imparcialidade e até para assegurar aos jornalistas as condições necessárias ao exercício da sua profissão com dignidade e respeito pelo código deontológico.

O problema da falta de sustentabilidade económica dos meios de comunicação social entrou finalmente em debate com as declarações do Presidente da República sobre a necessidade do Estado ajudar o sector.

A opinião publicada começou logo a inclinar-se para o lado contrário a esta possibilidade, com os argumentos principais de que tal coisa é comprometedora da independência do jornalismo e iria distorcer o mercado. Por exemplo, Pedro Santos Guerreiro, no Expresso, defendeu que os jornais não precisam de “ajudinhas” que classificou como intervencionismo do governo. Henrique Monteiro, também no Expresso, afirma que a ajuda estatal aos media iria matar a criatividade “porque é o engenho que aguça a arte”, e João Miguel Tavares, no PÚBLICO, considera que se trataria de uma “esmola”, e que o jornalismo passaria a ser um cão de guarda alimentado pelo ladrão.

Os dois últimos autores entendem que está em causa o modelo de negócio, e que o jornalismo terá futuro se os órgãos de comunicação social tiverem uma boa gestão, com criatividade e capacidade para se reinventarem e aproveitarem as novas tecnologias.

A questão é bem mais funda. Radica no modelo de financiamento, pelo que ultrapassa o modelo de negócio. Ou seja, o jornalismo pode até não dever ser um negócio. Qualquer modelo de negócio, independentemente do grau de criatividade e da capacidade da gestão, é do âmbito do mercado, e o jornalismo é uma função demasiado importante para depender apenas da economia de mercado.

O jornalismo corresponde a uma função de interesse público fundamental, de tal forma que historicamente se reconhece como o quarto poder; um poder constitucional material. I.e., um dos poderes com que a Constituição assegura e prossegue o equilíbrio através da separação de poderes, embora neste caso não formalmente consagrado. Dai o alerta de Marcelo Rebelo de Sousa, de que está directamente em risco a democracia. É por esta componente de natureza pública que o jornalismo não pode ser função tão dependente da lógica do mercado.

Há um serviço público muito relevante – de escrutínio da vida pública – prestado pelos jornalistas e pela comunicação social. É com isso que se justifica a existência de meios públicos. Independentemente da avaliação que fazemos da realidade da comunicação social pública em Portugal, todos percebemos que a rácio da sua justificação assenta no serviço público que lhe está subjacente.

Esse serviço público não se esgota na oferta alternativa, na preocupação com as minorias e outros aspectos decorrentes das externalidades do funcionamento da economia de mercado, nem é exclusivo dos meios detidos pelo Estado. Os meios de comunicação social que são propriedade privada também prestam um serviço público, precisamente porque esta qualidade – a utilidade para o interesse público – é da natureza do jornalismo. Este facto é já minimamente reconhecido desde que se aceitou que, no plano da televisão em português para o estrangeiro, o serviço público não é um exclusivo da RTP Internacional.

Sucede que a capacidade dos meios estarem à altura do serviço público que prestam depende da sua capacidade económica. E os privados em Portugal já não têm essa capacidade. Sabendo que os jornais e restantes meios lutam pela sobrevivência, facilmente concluímos em que estado está este serviço. 

Comparemos o jornalismo a um exército que combate pela verdade. Como acabará uma guerra em que esses combatentes, pela falta de meios e recursos, em vez da batalha com os inimigos da verdade, travam uma outra luta, pela sua própria sobrevivência? Recorrendo ao exemplo do cão de João Miguel Tavares; como pode o cão que morre de fome recusar o alimento que o ladrão lhe dá?

O jornalismo hoje, em Portugal, está neste nível, na luta pela subsistência, sem capacidade para recusar os modelos de negócio criativos, mesmo os nocivos e perversos, que passam pela crescente subordinação das opções editoriais ao interesse comercial.

Os programas que se produzem são os que têm maiores audiências, os temas das edições especiais dos jornais e revistas são as que geram mais publicidade, as rubricas informativas das rádios são aquelas que os anunciantes estiverem dispostos a pagar. Os conteúdos e os alinhamentos já são decididos mais em função do comercial do que do leitor. E quanto mais caem as vendas em banca mais isto é verdade, e vice-versa, numa espiral assustadora que não augura nada de bom.

Com o sector embrenhado nesta luta pela subsistência, sem meios e sem recursos, onde está a capacidade dos meios para investir na investigação, na reportagem de fundo, na diversidade e na qualidade?

O panorama português da comunicação social é conhecido. É grave, genericamente, nos meios de âmbito nacional e, nos planos regional e local, agrava-se ainda mais. A dependência económica dos meios, sobretudo dos locais, é um óbice, actual, real, concreto e grave, ao desempenho da sua missão.

Está efectivamente em causa a existência de imprensa livre, com capacidade para exercer a sua actividade com independência e imparcialidade e até para assegurar aos jornalistas as condições necessárias ao exercício da sua profissão com dignidade e respeito pelo código deontológico.    

Feito o diagnóstico – negro mas honesto –, temos de partir para o debate sobre o financiamento dos media, e com as premissas de que o jornalismo é serviço público, tem relação directa com a existência e a qualidade da democracia, e constitui um bem demasiado importante para estar entregue apenas ao mercado. 

Resta-nos debater como pode o Estado cumprir o seu dever no financiamento dos media sem intervencionismo dos governos. O Estado já ajuda o sector da cultura, e ninguém rasga as vestes por estar em causa a liberdade de criação e de opinião. No caso do jornalismo, cuja importância não é menor, o financiamento justifica-se igualmente, embora se admita que as regras têm de ser diferentes.

Para ser do Estado e não do governo, o financiamento requer um acordo de regime, como defende o Presidente da República, e obriga a mecanismos de garantia de transparência, justiça e independência, para garantir que o cão de guarda não precisa do alimento do ladrão.

Entretanto, o Estado, todos os estados e organizações internacionais, como a União Europeia, têm muito a fazer no domínio da regulação, nacional e supra nacional, da actividade dos gigantes da Internet, como Facebook, Google e YouTube, quanto a direitos de autor, fiscalidade e acesso à publicidade.

Enquanto o alimento vier do mercado, o nosso cão, que é o guarda do portão – a teoria do gatekeeper cruzada nos domínios de Kurt Lewin e David White –, pouco caça com estes lobos à solta.

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