Bispo do Porto: "Há formas de greve que vão longe de mais"

O bispo do Porto, D. Manuel Linda, avisa o Governo para o risco de desinvestimento excessivo em sectores-chave da sociedade, ao mesmo tempo que admite que os enfermeiros estão a ir longe demais na greve.

“Há formas de greve que vão longe de mais” Público/Renascença

Numa semana em que a Europa parece imersa num momento de convulsão social, de que a França tem sido o expoente máximo, com a revolta continuada dos coletes amarelos, D. Manuel Linda, bispo do Porto, aponta o perigo “absolutamente extremo” dos movimentos populistas. Quanto à greve dos enfermeiros, questiona-se se não estarão a ir longe de mais nas suas reivindicações, ainda que lhes reconheça justeza. De caminho, e a propósito das outras greves em curso, admite que o Governo, movido pela necessidade de reequilibrar as finanças públicas, tenha ido longe de mais no desinvestimento nalguns sectores-chave da sociedade: "Há despesas que logicamente têm que ser feitas.”

O Papa divulgou terça-feira a sua mensagem para o Dia Mundial da Paz onde reclama dos políticos que pratiquem um serviço à colectividade humana, sob pena de tornarem a política um instrumento de opressão. Como vê esta mensagem à luz da realidade portuguesa?

Diria, à luz da realidade portuguesa, e até talvez europeia e um pouco de primeiro mundo, que nós corremos o risco de transformar a governação num acto voltado fundamentalmente para a economia. É um sector importantíssimo para o sustento da vida e das condições de dignidade mas não é a totalidade da vida. E assistimos hoje, no mundo Ocidental, a esta predominância dos temas económico-financeiros sobre outros temas, como, por exemplo, a família, a solidariedade, a partilha, enfim. E tudo isso podia ser fomentado com uma nova cultura, incluindo a partir do próximo ano de governação.

Tem feito do direito ao descanso dos trabalhadores quase um cavalo de batalha. Como é que esse direito pode ser interiorizado pelos cristãos? Recusarem-se a trabalhar em sistema de trabalho contínuo? Lutarem por uma nova regulamentação do trabalho? Recusarem-se a ir aos centros comerciais?

Por exemplo. Mas aqui não chega apenas a boa vontade. É preciso, de facto, que os cristãos influam nos centros de decisão onde se tomam as grandes medidas que depois vão afectar a vida como ela é na realidade do dia-a-dia.

Isso significa o quê? Dedicarem-se à política?

E por que não? Há um autor que diz, e com alguma justeza, que nós, os cristãos, somos muito bons na periferia. Por exemplo, temos melhores centros sociais paroquiais, onde as pessoas são tratadas com mais humanidade, somos bons no ensino - nos rankings das escolas estão sempre escolas católicas nos primeiros lugares. Somos bons na periferia, mas parece que evitamos chegar aos lugares do centro, àqueles ministérios onde, de facto, as políticas se tecem e se decidem.

Como assiste à greve dos enfermeiros?

Eu estive ligado durante mais de 25 anos a uma escola de enfermagem. Tenho uma imensa admiração pelos enfermeiros. Julgo que, em grande parte das situações, eles estão a ser vítimas de alguma injustiça. Mas que se chegue ao ponto de adiar intervenções cirúrgicas urgentíssimas em função do bem individual de cada um, aí já não concordo. Portanto, estou do lado dos enfermeiros, no sentido de reconhecer que é preciso pôr cobro a algumas injustiças que afectam a classe, mas há formas de greve que vão longe de mais. E aqui, num caso ou noutro, não sei se não se está a ir longe de mais.

Os reclusos vão ficar sem assistência religiosa no Natal por causa da greve dos guardas prisionais. Algumas missas e visitas de bispos às prisões foram canceladas. A Igreja não vai tomar uma posição relativamente àquele que é um direito constitucionalmente garantido?

É um direito que não é exercido por um motivo circunstancial. Não é que a direcção-geral das prisões ou o Ministério da Justiça nos estejam a dificultar a vida, não; trata-se deste motivo circunstancial de não poder ser garantida a segurança. Eu próprio sou vítima disso: queria passar o Natal em alguma prisão e a direcção-geral mandou dizer: ‘Senhor bispo, pedimos-lhe encarecidamente que venha quando houver mais capacidade de segurança, isto é, quando terminar a greve dos guardas prisionais.’ E eu neste Natal não vou visitar nenhuma prisão.

A assistência religiosa não devia estar prevista nos serviços mínimos que são accionados em cenários de greve? Foi assim até 2014.

Não sabia disso, mas era lógico que estivesse. Não obstante, também não podemos ser aqui uns fundamentalistas que atiram a responsabilidade à tutela. Se não há condições, lamentamos, mas não se faz. A celebração eucarística pode ser feita noutro contexto, lamento é que nesta época tão importante para as famílias, eles, os detidos, vão ficar sem a visita praticamente de todos os familiares.

Está solidário com as reivindicações dos guardas prisionais nesta greve?

Não tenho acompanhado muito bem os motivos.

Têm que ver com a falta de recursos humanos e com a exigência de actualização da tabela remuneratória e de alterações nos horários de trabalho.

Se fôssemos falar numa linguagem mais global, é meritória a vontade do nosso Governo de sanear as finanças públicas, agora vamos ver como é que o fazemos. Há sectores que, de facto, não podem ser mais prejudicados. E, por exemplo, esse sector prisional só pode funcionar com guardas prisionais, não vamos agora reduzir abaixo dos mínimos. Não pode ser. É um custo que a sociedade tem de suportar.

É um problema que se estende aos funcionários judiciais, aos enfermeiros, além de aos guardas prisionais. São diversíssimos os sectores que acusam esse desinvestimento.

E só não se está a verificar no ensino porque o Governo levou à falência de muitos colégios particulares e os alunos tiveram de passar do livre para aquele que é o ensino estatal. E o Estado tem, por intermédio do seu Governo, de ver até onde é que pode ir nesta capacitação de reduzir as despesas. Mas há despesas que logicamente têm que ser feitas.

Em sua opinião, já ultrapassou esses limites?

Em alguns sectores, como, por exemplo, este dos guardas prisionais, talvez.

O Papa propõe, na sua mensagem, que os políticos regressem à fonte e que se inspirem na justiça e no direito. Portugal vai ter três eleições nos próximos tempos, em que muita gente vê o risco de movimentos xenófobos. Também partilha desse receio?

Partilho. Há fenómenos novos a que não estávamos habituados e relativamente aos quais não temos ainda uma grelha muito rigorosa para apreciação e para saber como havemos de controlar isto. Um é o fenómeno do populismo que pode ter as mais variadas formas: pode ser um populismo de esquerda, normalmente é um populismo de direita, pode ser um populismo liberal; enfim, tem formas muito distintas. O que é verdade é que estes movimentos não trazem por detrás de si uma ideologia, uma doutrina, não trazem uma estrutural mental organizativa. Eles flutuam ao sabor daquilo que sabem automaticamente que é o que a sociedade quer ouvir. Isto é de um perigo absolutamente extremo. Se alguém disser que quer um campo de concentração para aquelas classes de pessoas de que não gostamos tanto na via pública, então vamos para isso? Tenho medo.

Para o dia 21 está marcada para Portugal uma manifestação ao estilo dos “coletes amarelos” na Europa. Essas pessoas manifestam-se contra o próprio sistema. Vê motivo para essa manifestação ou vê só o risco de se começar de facto um movimento populista?

A manifestação, não a vejo a ela própria como um risco volumoso. É apenas um sintoma, uma pequena peça de todo um ladrilho que vai sendo construído e que nós não sabemos onde é que nos conduz. E há alguns teóricos um bocadinho mais pessimistas que falam inclusivamente do fim da democracia como nós a conhecíamos: a democracia formal, baseada fundamentalmente na alternância democrática, em propostas mais ou menos conhecidas, porque eram à base de determinados pressupostos ideológicos que alimentavam os partidos. Isso parece estar a chegar ao seu fim. E não sabemos o que é que aí vem.

E isso era bom?

Em linha de princípio, pelo menos concedia-nos segurança mental. Sabíamos que havia projectos que podiam ser antagónicos - um absolutamente de esquerda e outro de direita – e, de acordo com a consciência individual, situávamo-nos. E para um cristão podíamo-nos situar dentro dos que considerávamos partidos democráticos, respeitadores da liberdade e da dignidade pessoal. Tenho medo que, no futuro, já não aconteça isso. Que sejam apenas situações ditadas, não pela razão ou pelas propostas, mas pela emoção.

No fundo, que haja uma espécie de egoísmo militante que leve o povo em direcções estritamente de olharem para a respectiva carteira?

Pode até nem ser isso. Pode ser apenas uma tentativa ou uma capacidade que hoje as Ciências Sociais permitem de arregimentar pessoas a partir da emotividade para fins que muitas vezes são obscuros. Pode ser quase que uma espécie de jogo social: vamos ver se, ao fazermos esta proposta, temos ou não aceitação popular. E muitas vezes têm.

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