No Natal até um ateu pode fazer um milagre

Esta é uma história, de que me lembro muitas vezes, sobre vidas difíceis que às vezes nos passam ao lado.

Porque é Natal, abro uma excepção para contar uma história na primeira pessoa – uma história do acaso mas verdadeira.

Descobri Janjevo no Verão de 2013, poucos dias depois de chegar ao Kosovo, para uma aventura profissional que duraria dois anos. Guiava à procura de nada, a ziguezaguear nos montes, embalado pelo calor seco de Junho. Num vale sem saída, da cinzentura de um casario que gritava miséria, destacava-se ao longe, imponente, lá no alto, a torre de uma enorme igreja, branca imaculada, com uma cruz no cimo. Num país de 800 mesquitas, uma igreja assim agarra-nos. Lá subimos pelas estreitas ruas de pedra até ao largo. –?Catolic , catolic – diziam os miúdos a bater com as mãos no peito, à chegada dos portugueses curiosos. – Querem conhecer o padre? – Sim, claro! – Está a fazer a barba, vem já – num inglês mal arranhado.

Don Mateo Palic chegou sorridente, bonacheirão e barrigudo. De uma hospitalidade tocante, mostrou-nos a igreja, abriu-nos a casa e sentou-nos à mesa, com café turco, rakia e bolos secos, para nos contar a história dos Janjevci. Mineiros de Dubrovnik, que foram para ali trabalhar nas minas de prata há mais de 700 anos e formaram a mais antiga comunidade croata fora da terra-mãe. Outrora próspero, depois da loucura da guerra que engoliu aqueles povos nos anos 90, o enclave católico acabou reduzido a 250 habitantes, entre a indiferença dos sérvios ortodoxos e a leve hostilidade dos albaneses muçulmanos.

– Ser croata é ser católico – dizia Don Mateo Palic, num gesto orgulhoso de afirmação de identidade. – Mas aqui também é ser pobre, muito pobre! Contou-nos como a casa do padre também é a farmácia que dá medicamentos aos pobres, o centro de saúde dos velhos que não têm três euros para ir de camioneta ao médico, a creche dos miúdos descalços e rotos. Como os desempregados sobrevivem comendo o pouco que a terra dá. Como dividem a pobreza com os Roma – um grupo étnico de ciganos que ali se refugiou, também eles mal-queridos na sua própria terra, acusados pelos albaneses de serem amigos dos sérvios.

Nunca tinha visto tanta pobreza. Chegavam donativos da Croácia, mas era pouco. Pareciam meio abandonados. Talvez esquecidos.

No outono voltámos lá. Fomos à missa entregar ao padre umas boas centenas de euros recolhidos na pequena comunidade portuguesa do Kosovo. Nevava muito. Vinha um frio de rachar das serras à volta. Vimos dezenas de miúdos – croatas e roma – mal vestidos, mal calçados, mal comidos, a caminhar para a igreja gelada.

Decidimos organizar uma recolha de prendas para entregar no Natal. Botas quentes, casacos grossos, gorros e camisolas de lã, brinquedos, chocolates. Dois jeeps a abarrotar até ao tecto em poucos dias. Quem deu mais foram os portugueses – por nossa influência – e depois os polacos e os irlandeses. Primeiro intriguei-me mas depois percebi porquê: eram os mais católicos com o coração mais próximos daqueles croatas da mesma religião.

A menos de uma semana do Natal, lá fomos de surpresa a Janjevo, ao Don Mateo Palic, que nos recebeu sem conter uma lágrima no olho. – É o segundo milagre que Deus me fez na vida – disse ele emocionado –, vou ter a igreja cheia de crianças na noite de Natal, Zagreb não manda dinheiro para comprar prendas; não sabia o que fazer e agora aparecem-me aqui vocês com tudo isto. – E o primeiro milagre? – perguntámos. – Ah, isso foi há uns anos, quando só tínhamos uma semana de insulina para os nossos diabéticos, estava desesperado e na véspera de acabar apareceu aqui a apitar, vindo do nada, um jeep dos militares italianos para doar medicamentos, com duas caixas de insulina.

Voltei a encontrar o padre croata no dia 10 de Junho, no almoço do dia de Portugal, no quartel do batalhão do exército português em Pristina. Sentou-se à minha frente. – Sabe, Don Mateo – disse-lhe na brincadeira – é pouco provável que Deus me tivesse escolhido para fazer um milagre; sou ateu. Ele riu-se e disse: – Tu não és ateu, podes não ser católico e não saber de que religião és, mas não és ateu; tens uma religião qualquer. Rimo-nos e bebemos um copo. Bom, talvez mais. Ele adorava vinho do porto.

Qual é a moral desta história? Não tem. É só uma história de Natal, de que me lembro muitas vezes. Uma história sobre vidas difíceis que às vezes nos passam ao lado.

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