PSP e Ministério Público não protegeram mulher e ex-namorado matou-a

Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica diz que o sistema falhou em toda a linha num caso de 2017. Não foi definido qualquer plano de protecção da vítima e MP até queria suspender o processo.

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Têm sido organizadas várias manifestações contra a violência doméstica Manuel Roberto

Falhou tudo. Falhou a Polícia de Segurança Pública, falhou o Ministério Público, falhou o Serviço Nacional de Saúde. Apesar da escalada de violência, não foi tomada qualquer medida para proteger a vítima e conter o agressor, num caso de 2017. E o homem acabou por regar-se com gasolina e imolar-se pelo fogo, agarrando-se à ex-namorada.

O caso foi examinado pela Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, um grupo multidisciplinar criado no início de 2017 para examinar processos judiciais de homicídios em contexto de violência doméstica e compreender o que falhou e o que precisa de mudar. Neste quinto relatório, o grupo coordenado pelo procurador Rui do Carmo repete críticas ao MP que já fizera em relatórios anteriores. 

Aquela operária fabril, de 42 anos, e aquele marinheiro/pescador/salva-vidas, de 51, iniciaram uma relação em Abril de 2016. Namoraram até Dezembro desse ano. Nos primeiros meses, ele pareceu conformado com o fim da relação. Em Abril de 2017, começou a contactá-la de forma insistente, por telefone, pedindo-lhe para recomeçar. Depois, começou a persegui-la.

No dia 1 de Junho, o homem forçou a entrada na casa da ex-namorada, “agarrou-lhe o braço e arrastou-a com violência para a sala”. No dia seguinte, esperou-a à porta de casa, forçou a entrada no carro dela e esbofeteou-a. Nesse mesmo dia, esperou-a à porta da escola da filha. Volvidos quatro dias, voltou a esperá-la à porta de casa. Volvidos outros dois, esperou-a à saída do trabalho. Volvidos outros cinco dias, lá estava outra vez.

Assustada, a mulher bloqueou o número do ex-namorado. E foi à esquadra contar o que estava a acontecer. A PSP entendeu estar perante um crime de ofensa à integridade física. Ao receber a denúncia, o MP reclassificou-a como crime de violência doméstica, o que tem um carácter de urgência, e devolveu o caso à PSP, pedindo-lhe que investigasse e que avaliasse o risco. A PSP demorou duas semanas a fazer essa avaliação. Tudo porque, segundo explicou à equipa de análise, o pedido não foi feito de forma autónoma, mas dentro da ordem para investigar.

Entretanto, a violência continuava a escalar. No dia 23 de Junho, o homem voltou a aparecer em casa da ex-namorada. No dia 2 de Julho, seguiu-a até à praia. No dia 12, viu-a na rua a falar com uma sobrinha dele e agrediu-as. Quando se sujeitou ao exame médico-legal, ela contou que sofreu “agressões com pontapés nas canelas”, um “agarrão no pescoço com as duas mãos”, “queda para o solo esbatendo com a cabeça no solo” e que ele lhe enfiou um dedo num olho.

Hospital não questionou origem das lesões

A mulher chamou a PSP. E foi levada para um hospital público. Não há, nessa unidade à qual recorreu duas vezes, qualquer registo que indicie que lhe perguntaram qual a origem das lesões. Mas, saindo dali, lá estava ele, outra vez. Pendurou-se no carro dela. E ela conduziu para a esquadra, apavorada.

Foi ouvida, no dia 15 de Julho. Nesse dia, a PSP fez, por fim, a avaliação de risco. E concluiu que era elevado. Propôs então que se estabelecessem “contactos periódicos com a vítima” e que dali a 30 dias se reavaliasse o risco, apesar de nestes casos se recomendar que tal se faça no prazo de três a sete dias.

Nenhuma medida foi tomada para proteger a vítima. Nem sequer lhe foi atribuída o estatuto de vítima. Nas respostas que deu à equipa de avaliação, a PSP explica que, apesar de ter sido reclassificado como violência doméstica pelo Ministério Público, o processo continuou a basear-se no expediente inicial, de ofensa à integridade física.

Por essa mesma razão, a PSP não fez um plano de segurança da vítima. Optou apenas por “estabelecer contactos periódicos" com ela. Só que nem isso chegou a fazer. Só falou com ela naquela vez em que ela chamou a polícia e nas várias vezes em que ela foi, por sua iniciativa, à esquadra.

Só no dia 31 Julho o homem foi constituído arguido. E foi-lhe aplicada a mais suave medida de coacção: termo de identidade e residência. Já no dia 4 de Agosto o inquérito foi remetido para o Ministério Público, que se limitou a pedir que a vítima enviasse as mensagens que recebera e que se sujeitasse a uma perícia médico-legal.

Já a 23 de Agosto, estava ela numa paragem de autocarro com a filha e uma amiga, o homem aproximou-se. Nas costas delas, ameaçou: “Andas com muita coragem para andar com isto. Vê se te sai o tiro pela culatra.” Nesse mesmo dia, cruzaram-se, estava ela de carro, ele de bicicleta, e ele bateu-lhe no tejadilho.

MP quis ouvir ambos no mesmo dia

No dia 13 de Setembro, o Ministério Público proferiu um despacho no qual mandou pedir o registo criminal do arguido e informações sobre suspensão provisória do processo. Era para aí que pendia. E decidiu ouvir ambos no mesmo dia, 21 de Setembro, um às 10h, outro às 10h30, como se não houvesse risco.

Na véspera desse encontro anunciado, o agressor esperou a vítima à saída do trabalho. Ela caminhou até ao carro e entrou. Com um martelo que trazia numa mão, o homem partiu o vidro do lado do condutor. Com a faca que trazia na outra mão, golpeou-a. Na mochila, trazia um garrafão com gasolina. Começou a atirar combustível lá para dentro. Ela conseguiu fugir pelo outro lado. Ele apanhou-a e, depois de a agredir, fazendo-a cair, regou-se com a gasolina, imolou-se e agarrou-se a ela. Ele morreu logo no dia 21 de Setembro. Ela ficou com queimaduras em 80% da superfície corporal. Morreu no dia 27 de Janeiro de 2018, na sequência das agressões.

Durante este tempo todo, nem a PSP, nem o MP alertaram a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da área de residência. Era, todavia, recorrente a referência do agressor à filha da vítima. E a menina assistiu a alguns episódios.

Controlador e obcecado

No entender da Equipa de Análise Retrospectiva, era evidente que o homem era “controlador” e estava “obcecado” pela ex-namorada. Revelava “ciúmes doentios”, procurava “provocar medo”, forçá-la a retomar a relação. “A ideação homicida/suicida estava presente nas mensagens”, nota. Agrediu-a várias vezes, inclusive apertou-lhe o pescoço na rua. Intimidava-a por telefone e perseguia-a “de forma reiterada e agressiva”. E ela “procurou ajuda – junto de familiares do agressor, das forças de segurança e do sistema de justiça – sem qualquer resultado”.

A violência doméstica está estudada. Há momentos que “funcionam como disparadores de risco”. O primeiro ocorreu logo na separação, o segundo na apresentação da denúncia, o terceiro na notificação para prestar declarações no MP. Parece-lhes, por isso, que quer a PSP, quer o MP “deviam ter tido a iniciativa de tomar medidas para proteger” a vítima e para conter o agressor.

Por lei, a polícia “deve assegurar a imediata protecção da vítima, tomar as medidas que se revelem adequadas e proceder à avaliação do risco para a vítima”. Mais: “a realização das diligências de aquisição de prova necessárias ao conhecimento da situação tendo em vista a sua avaliação indiciária deve ocorrer no prazo máximo de 72 horas”. Mais: “deverá ser definido o plano de protecção da vítima” Mais: “o MP deve ponderar a necessidade de requerer ao juiz de instrução a aplicação de medida de coacção, que ocorrerá no prazo máximo de 48 horas após a constituição de arguido”. Neste caso, “nenhum dos preceitos legais acima identificados” foi cumprido.

Perante o elevado risco, a equipa de análise acha que muito poderia ter sido feito: “deter o arguido fora de flagrante delito; sinalizar a vítima para programa de teleassistência; reforçar o patrulhamento junto ao local da ocorrência/residência/trabalho da vítima; sinalizar a filha da vítima à CPCJ; se necessário, referenciar para casa de abrigo”. Nada disso foi feito.

“Não existiu gestão do risco”, conclui. Não houve capacidade de ligar os pontos. O grupo considera até claro que o MP se preparava para propor a suspensão provisória do processo, algo que, por lei, depende do “requerimento livre e esclarecido da vítima”, coisa que ela nunca fizera.

No fim, o grupo recomenda à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género que desenvolva, com urgência, mais formação inicial e continuada sobre violência doméstica para as forças de segurança e os magistrados do MP. E à Procuradoria-Geral da República que, na sua estratégia contra a violência doméstica, tenha especial atenção ao acompanhamento dos inquéritos que são investigados pelas polícias e que correm nas férias judicias. E ao MP e às polícias que vejam sempre se há crianças envolvidas. Se as houver, devem alertar as comissões de protecção.

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