Inspecção responsabiliza enfermeira em greve e médicos por morte de feto

Caso deu-se em 2017 durante protesto dos enfermeiros obstetras. Exame de rotina a grávida de risco internada no Hospital de Santa Maria podia ter dado o alerta. Não foi feito.

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Rui Gaudêncio

A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu que uma enfermeira e três médicos violaram o “dever de cuidado que lhes era exigível”, tendo responsabilidade na morte de um feto durante a “greve de zelo” dos enfermeiros obstetras, no Verão do ano passado, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O caso está ser investigado pelo Ministério Público. Há cinco arguidos.

Na tarde de 23 de Agosto do ano passado, uma grávida de 33 semanas deu entrada na urgência do Hospital de Santa Maria, onde era acompanhada desde os primeiros meses de gestação. Na casa dos 20 anos, com antecedentes de problemas respiratórios e cardíacos, a grávida apresentava restrição do crescimento fetal – o feto era mais pequeno do que esperado, estava no percentil 6,8 –, alterações do fluxo urinário e uma infecção respiratória. Ficou internada para “indução da maturidade pulmonar fetal e vigilância do bem-estar fetal”, segundo o diário clínico citado pelo relatório do inquérito da IGAS a que o PÚBLICO teve acesso.

Foi-lhe prescrito, entre outros exames de vigilância, uma cardiotocografia (CTG) — um exame complementar de diagnóstico que avalia o bem-estar fetal. Esta deveria ser feita “uma vez por turno”. No entanto, na noite de 24 de Agosto, a segunda do seu internamento, nem enfermeiros nem médicos fizeram a CTG de rotina às mulheres internadas na obstetrícia.

Era o primeiro dia do segundo protesto do movimento dos Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia, em que estes deixaram de exercer funções especializadas como forma de reivindicar uma diferenciação salarial. Por esse motivo, a única enfermeira especialista no turno da noite informou as utentes de que estava apenas a prestar cuidados gerais, deixando a mesma nota no resumo diário dos registos de enfermagem. “Declino responsabilidades nos superiores hierárquicos”, escreveu. Na equipa estava ainda uma enfermeira generalista e uma assistente operacional.

Uma hora depois de iniciar o turno, às 23h30 de 24 de Agosto, a enfermeira especialista ligou para a equipa médica do serviço de urgência questionando quem iria prestar os cuidados especializados que estavam prescritos, nomeadamente a CTG e a auscultação de focos fetais. O chefe de equipa respondeu “que aqueles cuidados não iriam ser realizados pela equipa médica durante o seu turno”, o contrário do que tinha acontecido durante o dia, uma vez que “não tinha médicos disponíveis”. Acrescentou “que a responsabilidade pelo incumprimento do que estava prescrito nas folhas terapêuticas seria inteiramente da própria” enfermeira especialista.

“Com base nessa informação, a enfermeira assumiu como decisão médica a não realização desses cuidados”, sublinhou a IGAS. Tomou esta decisão (sabendo que era a única enfermeira naquele turno que podia fazer a CTG de rotina, que os médicos não a fariam e que a grávida em questão necessitava de monitorização constante) “apenas porque estava de protesto”, afirma a inspecção. Esta recusa teve “eventuais repercussões no desenvolvimento do seu quadro clínico”.

A IGAS apoia-se num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, conhecido pouco mais de uma semana antes destes eventos, que considerava que não havia enquadramento legal para os enfermeiros em greve de zelo recusarem funções que lhes fossem atribuídas, pelo que podiam ser responsabilizados civil e disciplinarmente.

“Observação deficiente”

A grávida queixou-se pela primeira vez perto da uma da manhã de dia 25, com dor pélvica e lombar e vómitos. Na urgência estava o chefe de equipa e quatro médicas, duas das quais internas de 2.º e 5.º anos, apurou o PÚBLICO. A médica chamada para a observar medicou-a com um profiláctico para vómitos e náuseas. Cerca de duas horas depois a grávida repetiu as queixas, tendo uma enfermeira administrado um analgésico conforme indicado por outra médica ao telefone.

Na passagem de turno, pouco depois das 8h, a equipa de enfermagem notou que a grávida tinha “perda moderada de sangue vivo por via vaginal”. Não são detectados batimentos cardíacos fetais e confirma-se a morte do feto.

A perita médica ouvida pela IGAS considerou que uma CTG poderia ter revelado algum sinal de alarme. A inspecção aponta também responsabilidades ao médico chefe de equipa, por ter dado instruções às quatro médicas para não realizarem o exame de rotina. Acrescenta que se este considerava que não tinha condições de trabalho o devia ter explicado numa declaração de autodefesa, mecanismo criado pela Ordem dos Médicos para proteger os clínicos nestas situações. O próprio admitiu, quando questionado pela inspecção sobre se foram prestados todos os cuidados exigíveis, que “olhando só os registos clínicos, eventualmente, não”.

A mesma perita concluiu que a assistência médica prestada à grávida “foi de certo modo deficitária, decorrente provavelmente da conjugação de vários factos: greve dos enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia", que condicionou o trabalho de equipa, e “algum ‘facilitismo’ por parte dos médicos”, que fizeram uma “observação deficiente/não observação da grávida”. A IGAS propôs, por isso, que três médicos (o chefe de equipa e as duas internas) fossem alvo de procedimento disciplinar.

Contactado pelo PÚBLICO, o Centro Hospitalar Lisboa Norte, onde se integra o Santa Maria, não se pronuncia sobre o caso, ficando por esclarecer se os clínicos foram ou não alvo de sanções disciplinares.

Certo é que a enfermeira especialista em causa não foi alvo de processo disciplinar, uma vez que renunciou ao contrato de trabalho no próprio dia 25 de Agosto de 2017 e trabalha agora noutro hospital. Segundo o Código do Trabalho, citado pela IGAS, “o empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço enquanto vigorar o contrato de trabalho”. O caso passou, em Fevereiro, para as mãos do conselho jurisdicional da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros que, contactado pelo PÚBLICO, fez saber apenas que decidiu suspender o processo até que esteja concluído o inquérito judicial a decorrer no Ministério Público.

O Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa continua a investigar, tendo constituído cinco arguidos. O processo encontra-se em segredo de justiça.

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