Gisela João: “O Natal, para mim, começa por ser um cuidado com os outros”

Gisela João troca momentaneamente os fados pelo cancioneiro popular norte-americano e leva o espírito de Natal em forma de espectáculo a palcos de Lisboa, Porto, Viseu e Coimbra. Começa esta quinta-feira, no CCB.

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Gisela João RUI GAUDÊNCIO

A ideia nasceu de um convite e acabou por se transformar num espectáculo de Natal, que vai até quase ao final do ano. Telefonaram do CCB a Gisela João e lançaram-lhe um desafio: davam-lhe três dias no Grande Auditório, na época do Natal, para ela fazer o que quisesse. Com um único pedido: que cantasse músicas do cancioneiro norte-americano. Foi lá, conversaram, e ao sair da reunião pensou: se as datas eram no Natal, porque não centrar os espectáculos nesse tema? E aí começou a busca de repertório, que tomou forma no espectáculo que estreia no CCB, nas noites de 20, 21 e 22 de Dezembro, às 21h, seguindo depois para Viseu (Pavilhão Multiusos, dia 23), Porto (Casa da Música, dia 27) e Coimbra (Convento S. Francisco, dia 29), sempre às 21h30.

“Eu tento viver o Natal durante o meu ano inteiro”, diz Gisela ao PÚBLICO. “Porque o Natal está muito para lá das comidas típicas, dos presentes, do consumo, até da Igreja. O Natal, para mim, começa por ser um cuidado com os outros.” E aqui cabe também o lado da família, das reuniões familiares. “Nas cidades pequenas há uma coisa que nas cidades grandes não acontece, que é nós sairmos à rua e haver colunas com música de Natal a toda a hora. E eu sinto as pessoas têm mais atenção ao próximo, mais cuidado com o outro, falam com o vizinho para dar boas festas para a família toda (e se calhar durante o ano inteiro nem falam, só dão um “olá”).”

Natal rico, Natal pobre

Minhota, nascida em Barcelos, no mês que antecede o do Natal (em 6 de Novembro de 1983), Gisela recorda: “O nosso Natal foi sempre rico em alegria e pobre materialmente. Nunca houve muitos presentes, em alguns Natais nem sequer havia, mas isso nunca foi problema. O nosso pai dizia-nos muitas vezes: ‘O pai não vos vai poder deixar nada, mas deixa-vos muito amor e muita sabedoria da vida.’ Nós somos nove à mesa, sete irmãos mais o meu pai e a minha mãe, mas depois vêm primos, primas, namoradas e namorados, amigas e amigos, e de repente a casa torna-se ponto de encontro. Acho que as pessoas gostam desta alegria, da forma de viver que temos.”

Foi também às memórias de infância que Gisela João foi buscar inspiração para os espectáculos de agora. “Eu cresci a ouvir o songbook americano. A minha mãe, no pouco que havia, sempre fez questão de comprar essas coisas, que havia no Círculo de Leitores. O Nat King Cole ouço-o desde pequenina, a Ella Fitzgerald é a minha grande diva. Tenho a Amália, a Ella, a Billie [Holiday]. Acho que até ouvia Ella antes da Amália.” Da América reteve também um hábito, que a fascina. “Os americanos têm uma coisa que é super fixe (e que existe também cá, no Alto Alentejo): no Natal as pessoas juntam-se para cantar, têm cadernos e cantam, famílias, amigos. Acho muito bonito, porque a música aproxima as pessoas, não interessa se se é cantor ou não.”

Trio de jazz e orquestra

Ao escolher canções, foi registando as que melhor lhe serviam. E na lista figuram, entre outras, White Christmas, Silent nightSanta Claus is coming to town ou Have yourself a merry little Christmas. Primeiro escolheu mais de vinte. Escolheu mais de 20. “Depois, quando estava a tirar tonalidades, comecei a perceber que havia umas muito parecidas e outras que não eram para mim, para eu cantar. Mas descobri uma música, What are you doing new year’s eve?, que me deixou deliciada: ‘Onde é que nós estaremos quando os outros casais estiverem a abraçar-se e a beijar-se? Será que vamos estar juntos? Já pensaste quem vais abraçar?’ Acho isto tão bonito.”

Quanto à sonoridade requerida, partiu de uma ideia: “Achava que tinha de ser com uma big band de jazz. Mas depois fizeram-me perceber que para ter aquela sonoridade que a Ella ou o Nat tinham, era preciso uma orquestra.” Acabou, assim, por ficar um “núcleo duro” constituído por um trio de jazz, com Luís Figueiredo (piano e responsável pelos arranjos), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria), e a Orquestra Filarmonia das Beiras, dirigida pelo maestro António Vassalo Lourenço. “Somos 50 pessoas em palco”, diz Gisela, radiante. A cenografia do espectáculo é assinada por André e. Teodósio, numa parceria com ela própria.

Coisas que se perdem

Estas audições fizeram-na reflectir em questões de gosto e de modas. “Sempre consumi música electrónica, techno, e gosto. Mas tenho pena que na adolescência, para nos acharmos adultos ou cool, reneguemos algumas coisas. Tenho pena que se vão perdendo certas formas de cantar, de dizer a palavra, de sentir as melodias, de se tocarem as músicas. É pena que a qualidade se vá perdendo em detrimento da forma. Isso incomoda-me.”

Quanto aos espectáculos, formula um desejo: “Espero que as pessoas vão para casa com um sentimento de, ‘ok, preciso mesmo de ter mais atenção aos outros durante todos os meus dias do ano.’ Porque é isso que a gente leva desta vida: as ligações, contactos, os sorrisos das pessoas, as partilhas, esta coisa de estarmos abertos ao outro e não fechados. E preciso de acreditar que aquele público, nem que seja uma só pessoa, saia dali a sentir: ‘Cheira a Natal!’ E vá para casa de coração mole, sem ter as defesas ao alto.”

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