Da claustrofobia democrática para a claustrofobia social

Longe vai o PS da liberdade e das liberdades: há dez anos impunha a claustrofobia democrática; agora “inova” e arroja com a claustrofobia social.

1. É verdadeiramente surpreendente a reacção que vastos sectores da “vida” portuguesa – dos partidos às centrais sindicais, passando pelos meios de comunicação social – têm tido ao amplo movimento de protesto social em curso. Para usar a linguagem das revoluções, dir-se-ia, que se trata uma reacção “reaccionária”! Num ápice, aquilo que poderia ser visto como a salutar prova de vida de uma sociedade democrática, aberta e livre, foi transformado – em editoriais, espaços de opinião ou declarações oficiosas – numa espécie de grande e sofisticada teoria da conspiração,

2. O objecto predilecto desta reacção “reaccionária” – subscrita e liderada pela esquerda radical, pelo governo e por muitos líderes de opinião, designadamente jornalistas – tem sido a greve dos enfermeiros. Os enfermeiros, que foram durante os anos da troika o exemplo da classe profissional sacrificada, tornaram-se agora os perigosos e malévolos agentes da “contra-revolução”. Onde antes estavam vítimas das políticas de austeridade, estão agora algozes do direito à saúde e da liberdade sindical. Este juízo releva de uma leitura enviesada da realidade, em muitos casos facciosa e que, independentemente dos propósitos subjectivos, cria um ambiente objectivo de constrangimento e condicionamento da liberdade de expressão, de manifestação e de acção dos cidadãos em geral e dos trabalhadores em especial.

3. A primeira grande acusação dirige-se à circunstância de a greve não ser dinamizada pelos sindicatos tradicionais nem controlada pelas centrais sindicais. Antes de tudo o resto, convém pôr as coisas no lugar: o direito à greve é um direito dos trabalhadores, não uma prerrogativa dos sindicatos. É evidente que os trabalhadores podem fazer greve sem que ela seja intermediada por qualquer estrutura sindical. Importa, aliás, lembrar que, na sociedade das redes sociais (que insta sistematicamente à participação e ao envolvimento directo dos cidadãos e dos actores sociais), é natural que muitas formas de “manifestação” ou de “luta” surjam da iniciativa individual e das suas redes pessoais. Dada a importância das plataformas tecnológicas na vida actual, o que seria estranho e incompreensível é que os cidadãos e os activistas sociais ficassem cingidos aos modos clássicos de intervenção sócio-política. Nem os partidos, nem as centrais sindicais, nem os sindicatos são donos dos trabalhadores. De resto, qualquer pessoa que conheça as condições em que os enfermeiros exercem a sua profissão dificilmente pode achar que não há motivos sérios e ponderosos para levar por diante uma luta social. Poderá, isso sim, discutir-se a proporcionalidade da greve em razão dos seus efeitos e das exactas condições em que se desenvolve, nos mesmos termos em que se discutiriam a propósito de qualquer outra greve. Mas não é isso que está a acontecer. Está a ser lançado um estigma sobre os enfermeiros, só porque a “sua” greve se organizou e manifestou de um modo totalmente consentâneo com as actuais condições da sociedade tecnológica.

4. A segunda acusação causa igual perplexidade e incide sobre o “financiamento” da greve através de crowdfunding. Só quem não conhece os meandros dos movimentos e lutas sociais pode julgar que não há financiamento dos trabalhadores em greve. Os “fundos de solidariedade”, recolhidos pelos sindicatos, são um instrumento clássico da luta social e só eles podem explicar a duração e a dureza de muitas greves. Diga-se até que, historicamente e ao invés do que muitos escreveram, a origem do dinheiro utilizado nesses fundos de compensação dos trabalhadores é tudo menos clara. Não é preciso reflectir muito para perceber o enorme preconceito que se gerou contra a greve dos enfermeiros: se o crowdfunding tivesse sido utilizado numa greve dos transportes, controlada pela CGTP, estaria a falar-se em autêntica “inovação social”. Mas como se trata de uma greve que escapou ao tradicional circuito de controlo, já não vale a inovação social e tudo não passa de um ataque conspirativo dos privados contra o SNS.

5. O constrangimento e o condicionamento que se pretende impor ao movimento de protesto social, aí incluído o dos enfermeiros, é simplesmente inaceitável. Armado pelo Governo, reforçado pela esquerda radical, acriticamente absorvido por grande parte da imprensa, esse condicionamento traduz um insuportável clima de claustrofobia social. Para que não fiquem dúvidas sobre o grau de constrangimento que se atingiu, o primeiro-ministro quase acusou os enfermeiros de homicídio e a ministra – que ontem, em boa hora se retractou – chegou a usar a palavra “criminosos”. O PCP e a CGTP querem acantonar a greve, só porque ele lhes foge do controlo. E jornalistas de renome escrevem preocupados com uma eventual manobra do sector privado da saúde para destruir o SNS, como se não tivesse sido o Governo Costa, com a lei das 35h e cativações gigantescas, o grande ceifeiro do SNS.

6. Não pertenço – bem pelo contrário – ao grupo daqueles que se regozijam com a degenerescência dos sindicatos, dos partidos ou até da imprensa. Em cada uma das suas esferas de actuação, partidos, imprensa e sindicatos são mediadores indispensáveis ao bom funcionamento das democracias representativas tal como as conhecemos. Mas a sociedade política está em enorme transformação e, por muita nostalgia que se tenha, não poderemos parar o vento com as mãos. Uma coisa é certa: já se sabia que o PCP não era amigo da liberdade sindical; mas não se imaginava que o PS e uma boa parte da opinião publicada teriam ganas de censurar, diabolizar e estigmatizar um movimento de protesto social e sócio-profissional. Essa vontade de condicionamento, hoje clara nas áreas da segurança e da saúde, representa uma tentativa de forjar um irrespirável clima de claustrofobia social. Longe vai o PS da liberdade e das liberdades: há dez anos impunha a claustrofobia democrática; agora “inova” e arroja com a claustrofobia social.

  

Sim PSD e habitação. As propostas do PSD para a habitação vão no bom sentido: premiar os contratos duráveis; olhar para inquilinos e senhorios com equidade. 

Não Ministra da Saúde. Em gaffes e desautorizações já ultrapassa a ministra da Cultura. Desprezo na relação com os enfermeiros, radicalismo na Lei de Bases. Uma visão burocrática da saúde.

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