A partir de 2024, haverá desemprego entre os médicos de família

"Os médicos estão exaustos, andam de rastos. As listas de utentes são muito grandes." Quem o diz é Henrique Botelho, o médico que está à frente da Coordenação Nacional para a Reforma Cuidados de Saúde Primários há três anos.

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Paulo Pimenta

Não faz sentido que actualmente ainda haja pessoas a ir para os centros de saúde pela madrugada para poderem ter acesso a consultas de recurso, assume o coordenador nacional para a reforma dos cuidados de saúde primários, Henrique Botelho. Trata-se, sobretudo, “um problema de organização” e de falta de médicos desta especialidade, diz o médico que trabalha numa Unidade de Saúde Familiar (USF) no centro de Braga. Dentro de cinco anos, avisa, já haverá médicos em excesso e até desemprego na Medicina Geral e Familiar. Uma parte significativa da reforma que arrancou em 2005 com a criação do modelo das USF está feita, mas “não há reformas terminadas”, sublinha o médico que vai continuar mais um ano na coordenação dos cuidados de proximidade, como gosta de lhas chamar, até ao fim da legislatura.

Que balanço faz destes três anos à frente da coordenação?

Se quisermos ser objectivos, podemos dizer que uma componente substantiva da reforma dos cuidados de saúde de proximidade, como prefiro chamar-lhes, está feita. Quando entramos, apresentamos um plano estratégico e um plano operacional que estão em grande parte cumpridos. Mas entretanto aprendemos que há outras coisas que precisam de ser feitas. Não há reformas terminadas.

O problema é que temos um país a duas velocidades. Há unidades que funcionam muito bem e há outras em que as pessoas têm que ir para uma fila de madrugada para poder ter uma consulta de recurso com um médico que muitas vezes nem sequer conhecem. Isto faz sentido?

Não, não faz sentido. Essencialmente, é um problema de organização. Mas tem vindo a diminuir. E há um outro problema: a renovação dos quadros médicos tem sido assimétrica. Houve uma fase em que as faculdades estiveram quase fechadas e, por isso, não houve rejuvenescimento dos quadros durante um período considerável de tempo.

Há muitos médicos jovens e muitos médicos mais idosos, prestes a reformar-se. Faltam médicos na faixa entre os 40 e os 50 anos?

Sim. Também é preciso perceber que os médicos, à medida que vão envelhecendo, como praticamente sucede com todas as profissões, começam a ficar mais cansados. Ora o que tem acontecido é que, de uma forma geral, quanto mais idosos são, mais têm que trabalhar.

Os críticos das unidades de saúde familiar modelo B dizem que os médicos destas unidades ganham cerca de sete mil euros por mês, muito mais do que os que trabalham nas unidades convencionais e nas unidades modelo A, e que isto gera uma situação de grande desigualdade. 

Cerca de 50% desse dinheiro são descontos. O que acontece no modelo B é que as pessoas ganham mais porque trabalham mais e de forma muito mais organizada. Têm uma lista de utentes maior e recebem suplementos por isso. Há um sistema de remuneração misto — uma componente de salário fixa e um conjunto de suplementos e compensações sensíveis ao desempenho em quantidade e em qualidade.

No fim do ano, 12 anos depois de terem arrancado as primeiras USF, como é que estamos de cobertura nacional?

Actualmente, cerca de 60% das unidades são USF, modelo A e modelo B, e 40% são do modelo clássico de prestação de serviços na área da medicina familiar. Acho que podíamos estar bastante mais avançados na concretização [desta reforma] mas é preciso lembrar que as USF são de candidatura voluntária. 

Ao fim de tanto tempo, ainda faz sentido as candidaturas a USF serem voluntárias?

O facto de estas candidaturas serem voluntárias tem sido um dos factores de sucesso. Mas a minha equipa tem um estudo publicado que conclui que, se todas as unidades do modelo clássico, por um golpe de mágica, amanhã passassem a trabalhar como USF, a poupança estimada seria de 100 milhões de euros por ano. É uma estimativa que ninguém desmentiu até hoje.

2017 foi o ano em que abriram menos, ou seja, o pior ano a esse nível aconteceu com o actual Governo.

Sim, foi o ano em que abriu menor número de USF. Mas até ao final deste ano, vamos abrir 30 modelo A e 20 modelo B. Para cobrir o país todo o número ideal deve andar perto das 900. Também vamos pugnar para que os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) mais evoluídos tenham um contrato-programa com autonomia. Agora, quanto às USF, todos os anos os ministros das Finanças e da Saúde devem publicar até 31 de Janeiro um despacho que fixa o número a abrir. E, desde que há reforma, o despacho não foi cumprido. Em 2017 até não foi publicado. Mas vamos cumprir. E o compromisso, que era ter 100 novas USF até final da legislatura, vai ser cumprido.

Há outro problema: o das USF  modelo A que querem passar a modelo B e não conseguem. Por que é que isto acontece?

Não sei responder. Tem que perguntar ao Governo.

O Tribunal de Contas (TdC) fez uma auditoria arrasadora em 2014 em que dizia que o que se poupava com os medicamentos e exames nas USF modelo B era gasto com os recursos humanos, ou seja, não era evidente que compensasse. E afirmava ainda que bastaria que as consultas demorassem apenas 15 minutos para haver médicos de família para todos os portugueses.

É uma observação polémica e não documentada, temos enormes dúvidas sobre isso. Dizer que uma USF modelo B custa muito dinheiro tem que ser provado. Os salários são uma das componentes das despesas. E as outras? Os medicamentos? E se o desempenho dos profissionais tiver impactos positivos no resto da despesa? Se por exemplo diminuirmos a taxa de internamentos evitáveis e de idas às urgências? O TdC levanta algumas questões mas não diz que as USF são uma má opção. Questiona se aquilo que ganham a mais justifica o que comprovadamente fazem a mais e melhor. Mas a própria troika reconhecia a mais-valia deste modelo. As USF modelo B fazem mais, melhor e mais barato. Caro é trabalhar desorganizadamente e não envolvendo os profissionais. 

Já há estudos sobre o impacto desta reforma nas idas às urgências, por exemplo? Na coordenação projectavam fazer um estudo económico. Isso foi feito?

Há estudos parcelares. É preciso ver que os governos não são todos iguais e os ministérios da saúde não costumam durar muito tempo. Sabe quantos ministros da Saúde cumpriram até hoje uma legislatura? Dois, desde que temos democracia no país: a dr.ª Maria de Belém e o dr. Paulo Macedo.

O programa deste Governo diz que a reforma dos cuidados de saúde primários é uma prioridade. Tem sido? 

Relançar a reforma é o lema. Temos uma carteira de USF para abrir considerável. É preciso ver que há dois tipos de preparação neste processo: primeiro, terem entrado com a candidatura. Depois, a candidatura tem que ser aprovada pela equipa regional de apoio em cada uma das Administrações Regionais de Saúde. As novas USF têm que ser inicialmente modelo A. E depois há a candidatura de transição de A para B.  Agora, temos dados que mostram que mais de 90% do modelo A querem ser B. Ora, se o modelo B não se desenvolve corremos riscos de deixar de ser interessante o modelo A, porque as pessoas não vêm premiado o seu esforço. Trabalham mais no modelo A e podem começar a desmotivar-se.

Por isso, repito, este sistema que obriga a que as candidaturas sejam voluntárias não devia ser repensado por uma questão da equidade? As pessoas não têm culpa de que os médicos e enfermeiros nas suas terras não se queiram organizar desta forma.

No dia em que nos apresentamos dissemos: daqui a três anos, não gostaríamos de ir embora deixando ainda o modelo clássico a funcionar. Gostaríamos que todas estivessem transformadas em USF. Isso não foi possível. Tínhamos a noção de que ia ser difícil.

Por que é que os jovens médicos do Norte não querem ir para Lisboa?

É normal que queiram permanecer no local onde se formaram e vivem. E, de uma forma geral, o desenvolvimento desta reforma começou no Norte. Hoje, aliás, o Norte está quase sem utentes sem médico de família, enquanto Lisboa e Vale do Tejo tem meio milhão de utentes sem médico de família. O Algarve melhorou nestes últimos dois anos. No Alentejo há médicos mas vão sair até 2023-2024. Aí vai ser complicado. Nós vamos perder médicos em crescendo e depois esta curva [aponta para o gráfico das aposentações] começa a descer, e em 2024 acabou-se, vamos ter abundância, que corresponderá a desemprego na medicina geral e familiar.

Mas não há médicos que ficam a trabalhar para além dos 66 anos, como acontecia antes?

Hoje já não é bem assim. Os médicos estão exaustos, andam de rastos. As listas de utentes são muito grandes. E, se tenho uma lista mais idosa do que a média, tenho mais trabalho; se são pobres, tenho mais trabalho. Os mais pobres adoecem mais e mais gravemente.

Quando será possível todos os cidadãos terem médico de família?

Não falta muito. Há 680 mil utentes sem médico neste momento. Há 10.187.002 inscritos e há 5664 médicos, mas há médicos doentes. E até 2023 vão aposentar-se muitos [2088]. Ao mesmo tempo, o número de entradas de novos médicos (450 por ano) está uniforme, portanto, isto vai correr bem, conseguiremos colmatar as saídas. Podemos ainda ter de prolongar esta situação, se aceitarem as nossas recomendações [diminuição da lista de utentes para o tamanho que era antes da crise]. Achamos que 1900 utentes-padrão é demais.

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