Porque não temos extrema-direita? Uma palavra

A ausência da extrema-direita no nosso país é um facto político precioso. Deveríamos todos esforçar-nos para o manter assim. A sorte ganha-se.

Ontem nestas páginas Teresa de Sousa dava conta de uma pergunta recorrente: “todos os europeus que encontro me pedem a explicação” para o facto de em Portugal “não termos um partido de extrema-direita”. É uma experiência partilhada. Com a recente eleição de uma dúzia de deputados de extrema-direita no parlamento regional da Andaluzia, caiu a “exceção ibérica” à emergência da extrema-direita no continente europeu e ficou só uma “exceção lusitana”. Além de Portugal, só a Irlanda regista também uma completa ausência da extrema-direita no seu panorama político. Por isso a frequência com que estrangeiros perguntam a portugueses como se explica tal fenómeno só vai aumentar.

Infelizmente, não é fácil dar-lhe uma resposta. Tal como Teresa de Sousa, também eu costumo começar a minha tentativa de explicação pelo que ela chama de “a vacina do fascismo”, ou seja, o facto de 48 anos de ditadura nacionalista e ultra-conservadora ainda estarem na nossa memória recente. O problema é que essa era também a explicação que se costumava dar para a ausência da extrema-direita na Espanha, que tem uma memória igualmente recente da ditadura, e aparentemente essa memória não protegeu os espanhóis.

A partir daqui, divirjo dos restantes argumentos aduzidos por Teresa de Sousa, não por discordar forçosamente deles, mas mais por favorecer outros argumentos. Onde ela vê como possível explicação a “moderação dos socialistas portugueses” e o “instinto de sobrevivência dos partidos à sua esquerda”, eu costumo antes relevar a dimensão e homogeneidade cultural do país, onde é relativamente fácil criar e manter linhas de comunicação abertas entre campos políticos diferentes (mas não foi sempre assim) e o facto de Portugal ter uma bem sucedida experiência de integração de centenas de milhar de retornados de África, que por sua vez antecedeu um também relativamente harmonioso acolhimento de imigrantes a partir dos anos 80/90. Uma das coisas que me surpreendeu quando comecei a ir à Hungria reportar sobre a regressão do estado de direito sobre o governo Orbán foi a facilidade com que se fazia presente a memória da Iª Guerra Mundial e sobretudo do Tratado de Trianon, que em 1919 retirou à metade húngara do Império Austro-Húngaro muitos territórios hoje romenos, croatas e eslovacos. “Fomos traídos”, diziam de políticos a jornalistas, “roubaram-nos dois terços do país”, acrescentam, esquecendo que antes disso já a monarquia imperial habsburga tinha oferecido à sua coroa húngara territórios que não eram dela. A gestão cuidadosa do esquecimento e da exacerbação da memória na Hungria criou o caldo de vitimização e ressentimento que ajudou a propulsionar Orbán e levá-lo ao poder. Boa parte dos carros na Hungria andam com autocolantes nos quais aparece o mapa da Grande Hungria, incluindo capitais de três estados vizinhos. Em Portugal não temos nada disso, apesar do nosso “fim de império” ser bem mais recente.

Outra justificação possível faz parte daquilo a que gosto de chamar “mitos que funcionam”. O principal “mito que funciona” em Portugal é o do “país de brandos costumes”. Se olharmos para a nossa história, desde a forma como o Gama chegou à Ásia, aos séculos de Inquisição, à repressão pombalista, ao estado de guerra civil oficial ou larvar no século XIX, à confusão frequentemente violenta da Iª República e à medonha noite salazarista terminando numa guerra colonial em três países africanos, veremos que o mito do “país de brandos costumes” é mesmo isso: um mito. Mas se suficiente gente acreditar nele, passa a ser um mito que funciona. E apesar de em muitas casas a violência doméstica ser um flagelo, e de na rua se ouvir dizer coisas terríveis sobre os políticos, continua a ser verdade que os portugueses sentem em geral uma verdadeira repulsa pela violência e especificamente pela violência política. Foi talvez isso que nos evitou uma guerra civil após a revolução e que nos encaminhou para uma constituição que — ao contrário do que se passa em Espanha — é unanimemente respeitada.

O pior é que quando chego ao fim destas explicações não consigo evitar uma conclusão que parece pouco “técnica” do ponto de vista historiográfico. A grande razão que nos tem protegido, até agora, da extrema-direita resume-se numa palavra: sorte. Não vale a pena embandeirar em arco com a ideia de que temos um caráter especial ou diferente dos outros. Temos tido, também e sobretudo, bastante sorte. Os putativos líderes de extrema-direita que têm aparecido são em geral patéticos e muitas vezes criminosos de meia-tigela, ou ambas as coisas. Outros políticos que namoraram com a retórica xenófoba acabaram por casar com a respeitabilidade que dá o poder. E o misto de denúncia com ignorância seletiva por parte de comentadores e jornalistas tem até agora funcionado.

Não quer dizer que a nossa sorte continue, porque o que está a acontecer na Europa e no resto do mundo tem excitado as imaginações de certos oportunistas na confluência entre a baixa política e a imprensa tablóide. Mas a lição mais importante é que a sorte trabalha-se. Se os políticos deixarem de tentar dar soluções reais para problemas reais, é bem possível que os demagogos das soluções irreais para problemas muitas vezes também irreais acabem por conseguir lograr aquilo em que até agora têm falhado em Portugal. A ausência da extrema-direita no nosso país é um facto político precioso. Deveríamos todos esforçar-nos para o manter assim. A sorte ganha-se.

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