A conquista das palavras na Argentina pós-referendo

Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu.

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Claudia Piñeiro NUNO FERREIRA SANTOS

Para a argentina Claudia Piñeiro, não apenas como escritora mas também no plano pessoal, este “foi um ano de pensar muitíssimo nas palavras que se usam, como se nomeiam as coisas e que palavras são escolhidas”. E uma causa, em particular, motivou essa reflexão da autora do romance Uma pequena sorte (D. Quixote): o debate sobre o aborto na Argentina, no qual Claudia Piñeiro participou activamente, tomando a palavra em discursos em ambas as câmaras do Congresso.

E se, no plano político, a batalha foi perdida com o chumbo do Senado argentino, o debate na sociedade argentina ainda agora começou, já que uma barreira, talvez das mais importantes, foi deitada abaixo: “uma grande mudança, que foi muito importante, tem que ver com o segredo”, explica ao PÚBLICO a escritora, que esteve recentemente em Portugal a lançar o seu livro. Era algo que não se dizia, que não se nomeava. E se agora a palavra é dita sem tabu, no início da discussão ainda se falava com cuidado na “lei da interrupção voluntária da gravidez”.

“Tudo isto foi muito reparador para a sociedade”

“Na minha família, temos uma tia-avó de 90 anos que nos contou que, há muitos anos, fez um aborto”, confidencia. Agora, já há conversas familiares “onde uma mãe, uma filha, uma tia dizem que fizeram um aborto”. Pode-se conversar sobre isso. No entanto, muitas destas mulheres viveram esta experiência numa profunda solidão. “Guardaram isto dentro de si, sem poder falar com ninguém, com medo de serem rejeitadas por tê-lo feito. Tudo isto foi muito reparador para a sociedade.”

Durante o seu percurso ao longo deste ano de luta, Claudia Piñeiro, 58 anos, leitora ávida e uma “recomendadora” generosa, leu “muitos livros, alguns relacionados com isto [sobre aborto], outros não”. Entre eles, destaca El salvaje, de Guillermo Arriaga, e República Luminosa, de Andrés Barba (editado em Portugal pela Elsinore), mas dedica mais recomendações a escritoras argentinas. Selva Almada, autora de Raparigas Mortas (ed. D. Quixote), que reflecte sobre a violência de género, ou Mariana Enriquez, autora de As Coisas Que Perdemos no Fogo (editora Quetzal), que escreve contos de terror “extraordinários, muito bons”. Não as nomeia porque têm “algum toque feminino” — apesar de “poder haver também terror no feminino, pode haver abismo, pode haver suspense, pode haver policial” —, mas porque essas vozes, afirma, “têm uma potência que lhes vem a partir da literatura”.

Fala ainda de Samanta Schweblin, autora de Distância de Segurança ou Pássaros na Boca (editados pela Elsinore) e do seu olhar a partir do fantástico que é também “um mundo feminino”, com “um olhar sobre a não-maternidade”, ou Mariana Dimópulos, com o seu livro sobre uma mulher que não quer ser mãe. “Há mulheres que não querem ser mães, e a sociedade não lhes aceita essa decisão de não-maternidade”, lamenta.

“Era uma vergonha dizer que não queria ser mãe”

Também no seu romance, Uma Pequena Sorte, a protagonista é uma mãe que só mais tarde se pergunta porque é que foi mãe. “Porque também há muitas mulheres que chegam à maternidade sem que se lhes tenha sido perguntado se era o que queriam”, diz, “é um papel imposto pela sociedade”. Mais uma vez, regressamos às ideias que finalmente se podem nomear, como um véu que é retirado. “Era uma vergonha dizer que não queria ser mãe.”

Escritora consagrada — Claudia Piñeiro recebeu o Prémio Clarín Novel de 2005 pelo romance As Viúvas das Quintas-feiras (ed. Quidnovi), com elogios rasgados de José Saramago no júri —, a questão do aborto foi um tema que sempre a inquietou, e não ficou de fora dos livros. Foi também através da literatura que tentou tocar outras pessoas no último ano. “Por exemplo, quando fiz o discurso aos deputados, levei o livro de John Irving [As Regras da Casa da Sidra], porque achei que era mais fácil explicar com a literatura do que com um conceito fechado”.

Conta que nunca pertenceu a nenhuma organização feminista. “As circunstâncias foram-me colocando nesse lugar [de protagonismo]”, explica, já que “nem todos queriam falar sobre isto”. Mas a reivindicação dos seus direitos enquanto mulher vem de longe. “Venho de uma geração que tem vindo a lutar por estes espaços há muito tempo. Sou economista, tive o melhor currículo da universidade, medalha de honra. Os homens que entraram comigo não eram melhores. Eram homens que eram bons contabilistas e economistas, mas às mulheres era-lhes exigido serem as melhores”, recorda.

“As mulheres europeias têm urgências muito diferentes”

A sociedade argentina tem sentido outras mudanças nos últimos anos. Ainda antes de as actrizes norte-americanas tornarem visível a campanha Me Too, desde 2015 que as argentinas têm saído às ruas para gritar “Ni Una Menos”.

“Às vezes a violência está enraizada e a aceitamo-la porque pensamos que é normal. É normal que te tratem mal, que te digam certas coisas, que te empurrem contra alguma coisa, que te toquem na rua.” Mas mais do que o assédio, a reacção à violência de género na Argentina começou devido aos “muitos casos de mortes de mulheres por serem mulheres, que chamamos femicídios”.

“Quando um país está a lutar para que não se matem mulheres, o MeToo, que é muito valioso e que é muito importante, deixa de ser tão importante, porque há uma urgência maior. E a realidade é que as mulheres europeias têm urgências muito diferentes das das mulheres da América Latina, de África, do Médio Oriente.”

Para Claudia Piñeiro, a luta feminista — que tem unido mulheres e homens — não se esgota na derrota no Senado. “Todo esse movimento é imparável, e é das jovens. Nós, mulheres mais velhas, acompanhamo-las com tudo o que podemos, mas não temos dúvidas de que será um movimento delas. E não acho que haja volta atrás.”

“O novo romance já está na minha cabeça”

Num ano de trabalho político intenso, Claudia Piñeiro escreveu vários artigos para a imprensa, incluindo para órgãos de informação estrangeiros que lhe pediam um olhar sobre o que se passava na Argentina. Mas, no campo literário, aproveitou para rever e reescrever uma série de contos — algo que lhe exigia menos do que escrever um novo romance —, uma colectânea que foi recentemente lançada na Argentina. “O novo romance já está na minha cabeça, mas ainda não tive tempo e a tranquilidade para iniciá-lo. Preciso de tranquilidade no arranque, algo que não me aconteceu neste último ano”.

No novo livro de contos, Quién No (Penguin Random House), um dos textos é sobre um casal que está “a decidir se vai fazer ou não um aborto”. Mas como foi escrito há cerca de oito anos, a palavra não é mencionada uma única vez. “Quando escrevi este conto, essa palavra estava quase proscrita. Se o escrevesse hoje, teria usado a palavra aborto. Porque hoje já há um nome que se pode usar.”

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